sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

VII- O CHEIRO A LIMÕES

Desde pequeno que tinha medo da chuva e a pressentia assim que o cheiro forte e intenso a limões verdes saía do limoeiro e se espalhava pelo quintal e tudo quanto era arredores. Desde pequeno, que assim que no horizonte surgia um escuro escorregando do céu, que se refugiava em casa, trancando portas e janelas. Costumava ficar escondido num recanto espreitando o cheiro dos limões e avistando a água a bater na vidraça e correndo pela telha espetada no chão encharcando o imenso limoeiro do quintal e tremendo angustiado por um terror enorme.
Lembrava-se perfeitamente do vento, aquele vento que lhe trazia o cheiro e das primeiras gotas, mal o horizonte as desenhava ainda longe e do terror que lhe inspiravam. Pequenas, brilhantes, trazendo sempre junto aquele cheiro a limões verdes, secando-lhe as brincadeiras obrigando-o a procurar refúgio junto da mãe e a abandonar tudo quanto fosse terreno aberto. Sujeitando-se à quietude de uma oliveira ou de qualquer outra árvore amiga. Assim crescera sempre com medo da chuva um medo irracional que lhe aterrorizava os dias mais escuros. Nunca estava descansado quando por qualquer motivo tinha de sair de casa num desses dias, todas as viagens, todos os passeios toda a sua vida girava em volta da chuva. Já pensara em mudar de terra, mudar de país, mudar de continente mas da única vez em que viajara para longe uma chuva triste e miúda prendera-o durante sete dias num quarto de hotel impregnado de cheiro a limões. Desde pequeno que tinha medo da chuva e desde pequeno que assim que acabava de chover saía saltando e pulando para o quintal onde a oliveira e o limoeiro cheiravam a terra fresca e era debaixo delas que se despia e rebolava na terra, na erva húmida ficando completamente irreconhecível de sujidade e cheirando a ervas e a terra molhada e impregnado com aquele cheiro a limões. Era sempre a mãe que acabava por vir buscá-lo, levantando-o da terra, enxugando-o, lavando-o tirando-lhe da pele o cheiro dos limões, aquecendo-o, fazendo-o voltar à vida.
Agora tudo era diferente, tudo tinha mudado. Tinha descoberto o porquê do seu medo, o porquê do vento trazer com ele aquele cheiro, o porquê de só ele o aspirar, o ver.
Sessenta anos depois estava ansioso. Queria ir juntar-se a eles, arredondar-se, libertar-se definitivamente. O cheiro, ténue ainda avisara-o, mandara-o preparar-se, ela estava chegando, desejava-a, ansiava-a!
Aguardava. O cheiro a limões era cada vez mais intenso, irrespirável quase. Despira-se já completamente e nu de braços abertos em direcção ao céu esperava-a ansioso. Esperou durante oito horas nessa posição e quando finalmente ela chegou, grossa, forte negra e intensa, deixou-se escorregar gota a gota pela telha do limoeiro….Quando a mãe chegou para o enxugar, limpar e secar já tinha subido pelas raízes e lá do alto espalhava o cheiro pelas redondezas.
Nunca mais teve medo da chuva!


Vitor Barros

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

DOZE QUADRAS

Tendo recebido da minha amiga, conterrânea e mana adoptiva, Isabel Maria o convite para escrever um texto baseado em doze palavras, resolvi não lhe fazer a vontade.
Resolvi procurar na minha memória quadras de um homem que ela sabe que calcorreou caminhos que também nós já pisámos. Que o nosso anterior sangue ouviu e viu.
Que nasceu do povo e cresceu no povo.
Escolhi algumas palavras dela, escolhi algumas quadras dele.
Para a Isabel, doze quadras do ANTÓNIO ALEIXO:


O Homem vive sonhando
Sonhando a vida percorre
E desse SONHO dourado
Só acorda quando morre

Vem da SERRA um infeliz
Vender sêmea por farinha
Passados dias já diz
Esta rua é toda minha

Meu AMOR vê se te ajeitas
A usar meias modernas
Dessas meias que são feitas
Da pele das próprias pernas

Tornaste-te meu AMIGO
Por teres medo de mim
Não posso contar contigo
Não quero amigos assim

Quantas sedas aí vão
Quantos brancos colarinhos
São pedacinhos de PÃO
Roubados aos pobrezinhos

Casado que arrasta a asa
À mulher deste e daquele
Merece que tenha em casa
Outro homem no lugar dele

O rato mete o focinho
Sem saber que faz asneira
Depois ou larga o toucinho
Ou fica na ratoeira

Morre o rico. Tocam sinos
Morre o pobre. Não há dobres
Que Deus é este dos finos
Que não quer saber dos pobres


Para que te não iludas
Com amigos repara nisto
Foi com um beijo que Judas
Levou à cruz Jesus Cristo

Ao chamar-te inteligente
Ficaste desconfiado
Por ser um nome diferente
Dos que estás habituado

És parvo mas és distinto
Só vês bem o que tens perto
Não compreendes que te minto
Quando te trato por esperto?

Quando todos se convençam
Que à força nada se faz
Serão felizes os que pensam
Num mundo de amor e PAZ



De forma completamente aleatória, e correndo o risco de alguma incorrecção, dado estar a escrever de memória aqui fica o meu contributo para que quem eventualmente não conheça a obra de António Aleixo, fique curioso e a vá conhecer melhor.
Deixo uma última quadra para a Isabel, ela sabe porquê e vai comentá-la…

Não há nenhum milionário
Que seja feliz como eu
Tenho como secretário
Um professor de Liceu

Beijinhos e abraços para todos

Vítor Barros

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

VI- AMORES-PERFEITOS

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca



Naquele recanto matizado de paz e flores, cabelos suaves moldando o vento ela brinca! Colhe flores, vê a vida rumorejar. (Parecem-me malmequeres, margaridas, tulipas?!)
À beira do vento, suavemente em paz, damos as mãos (macias, pequenas as tuas) e olhamos.
Como está feliz….uma borboleta branca voa à sua volta.
Entardecendo silenciosos, ouvimos os nossos corações a respirar no opaco entardecer daquele fim de dia. Suavemente também, uns fios brancos navegam no calmo oceano louro do teu cabelo. Enternecidos os meus escutam o teu doce navegar.
Amo-te.
Nunca te ofereci rosas (ela brinca nas flores, margaridas?) nem flores bonitas. Nunca te fiz um poema, nem te levei a jantar a restaurantes onde as velas tremessem com o respirar da nossa paixão. Nunca te comprei aquele vestido vermelho com que ofuscasses o sol. Nunca.
Nunca te escrevi uma carta de amor, nunca me ajoelhei aos teus pés cantando hinos de amor. Nunca.
Nunca te levei àquele concerto, nunca fomos ver aquele quadro famoso, aquela ópera, aquele bailado….
Ela brinca suave. Pelo canto do olho espreita-nos. Colhe flores. (malmequeres, tulipas, cravos?!) Nunca….
Aperto-te a mão com mais força. Olho-te nos olhos. Olhas para mim sorrindo.
Amo-te! Os teus olhos são verdes, lindos…têm flores, (malmequeres?) poemas escondidos, borboletas brancas a esvoaçar.
Ela salta feliz, aproxima-se. Olha-nos, vê as nossas mãos apertadas sorri. Salta.
Não falamos não é preciso. Sinto a tua mão na minha…doce, quente!
Olhas-me e eu sei tudo. Olho-te e sei que sabes tudo...
Ele está ali. O poema que não te escrevi, as flores que não colhi para te oferecer, as velas tremendo com o calor da nossa paixão, o grito de amor, a tela mais bela, a mais bela melodia, o melhor tango.
O sorriso mais puro. O mais doce. A vida rumorejando.
Amo-te e tu sabes! Sabes que como o poema diz, continuas a ser alma e sangue e vida em mim, que continuo a amar-te perdidamente, perdidamente. Sabes que em fundo continua a mesma música, a mesma Ave-Maria de Schubert, no meio dela a mesma frase: Até que a morte os separe.
Até ao fim perdidamente,
Aproxima-se feliz, suave e docinha pega-nos nas mãos (rudes grandes, desajeitadas as minhas) e em cada uma deixa uma flor:
Amores-perfeitos!