terça-feira, 28 de junho de 2011

A Segunda Morte

Ia morrer pela segunda vez e o facto assustava-o mais do que da primeira. Na primeira tinha tido uma morte suave, boa e calma, quase que a saboreara com gosto. Despedira-se de todos e partira sem qualquer remorso de cá ter estado. Desta vez era diferente. Tudo lhe parecia novo e difícil de encarar. Não que não tivesse gostado de ter morrido, mas uma certa nostalgia já o estava invadindo. Tinha morrido num dia bonito, de sol alegre e calor abundante, num dia de maré-cheia. Lembrava-se ainda bem como suara apertado naquele horrível colarinho.
Quando chegara lá encarara as coisas com naturalidade…Encontrou amigos, conhecidos, pessoas que não via há muito tempo e pessoas que francamente esperava nunca mais ver e que afinal lá estavam também. Passou os primeiros dias um bocado aborrecido, sem nada para fazer, sem conseguir conversar com ninguém, sem fome, sem sede, sem calor...sem nada. Era como se estivesse vivo, mas um vivo muito doente, quase um vivo morto, francamente que estava achando que para estar morto daquela maneira quase seria preferível continuar vivo.
Agora que ia morrer novamente estava assustado. Não sabia como seria novamente recebido, se o mesmo tédio o assaltaria se encarariam bem o seu regresso se não o considerariam um traidor às leis da vida. Não sabia bem quando seria a partida, mas iria preparar bem as coisas.Passaria pelo cemitério e iria arejar o local onde supostamente deveria estar. Tiraria aquela jarra azul que não lhe dizia nada. Arrumaria devidamente as rosas vermelhas que o vento costumava espalhar, daria uma limpeza geral. Endireitaria as fotografias, iria retirar algumas que o favoreciam menos. Deixaria ficar somente algumas e colocaria em primeiro plano aquela em que na companhia do filho, na areia da praia, cavalgavam garbosamente os seus dois cavalos amarelos. Tantas recordações de quando era vivo..! E agora ali prestes a estar morto de novo. Inconformado resolveu caminhar um pouco, sentia-se sonolento, amodorrado. O ar fresco do entardecer e o cheiro da maré vazia carregada de saudade fizeram-lhe bem, irrigaram-lhe o cérebro, os músculos atrofiados distenderam-se. Sorriu, sentou-se e esperou por eles, sabia que viriam em breve.
De repente ouviu-os aproximarem-se, sentiu-lhes a respiração o cheiro, amarelos, galopando quase sem tocar na areia, levantado uma brisa amarela.Viu-se montado num deles e o filho noutro. Passaram por ele e acenaram-lhe sorrindo. Tentou gritar-lhes mas a voz não saía. Soube então que estava morto que continuava morto e bem morto, porém os cavalos ao fundo galopando diziam-lhe que não, que era mentira que continuava vivo bem vivo…Deu uma palmada no cavalo, acelerou o galope voltou-se para trás e despediu-se de si próprio enquanto se elevava nos ares.
Nunca mais se veriam…