domingo, 13 de abril de 2008

IX- O APITO DOS COMBOIOS E A ERMELINDA

No dia em que se ia reformar acordou cedo. Sentia a cabeça vazia esvaziada de vida, amorfa e inútil como uma peça decorativa que alguém lhe colara ao tronco. O estômago rugia-lhe como uma fera ferida e ardia-lhe como um fogo. Maldita azia que o acompanhava desde há longos anos, mastigando-lhe as vísceras, comendo-o aos poucos, rasgando-o por dentro. Levantou-se, vestiu-se e preparou-se para fazer o caminho que durante mais de quarenta anos sempre fizera. Iria passar pelos mesmos locais à mesma hora…Quando saísse ouviria o primeiro comboio a apitar, negro, enorme e enrolado numa nuvem de fumo.Gostava de os ouvir apitar, o som alegrava-o, acordava-o fazia-o por vezes sentir-se vivo. Mais à frente na casa amarela, de um amarelo já pálido e mortiço, na esquina da curva estaria a Ermelinda ainda bonita e sempre com aquele ar triste, pendurando na corda as camisas, as calças, as meias cheirando a lavado e pingando tristemente para o chão como que suspirando por um sol ainda sem força. Era a vida.. dizia anos e anos a fio a Ermelinda, sorrindo para o sabão.
(Detestava ouvir os comboios apitar, dissera-lhe um dia: Pareciam-lhe almas penadas gemendo na noite escura.) Detestava também a azia e aquele amarelo morto que a casa lhe pusera na alma…
Mais à frente a velha árvore onde se costumava sentar um pouco continuaria lá imponente, a ver passar vidas por ela sem se reformar sem pingar tristemente para o chão sem azia nas suas raízes carnudas, ouvindo os comboios apitar. Também gostava daquela árvore.Vira-o envelhecer, parecia que por vezes lhe sorria e zombava dele. Adiante um pouco, dobrada a última curva da estrada lá estava o monstro que lhe comera a vida, que lhe pusera a cabeça vazia e azedara o estômago, lá estavam as suas veias de aço carnudo suportando o peso dos apitos gemendo na noite. No seu pequeno gabinete meia dúzia de recordações para trazer, uns colegas para despachar e um pequeno chefe de nariz vermelho e óculos tristes pendurados já nem se lembrariam que ele alguma vez existira E o raio da azia sempre a apoquenta-lo. Fria, cortante mais negra que o apitar dos comboios.
Em frente ao espelho preparou-se para desfazer a barba. O vapor da água quente concentrada no espelho não o deixava ver bem. Passou a lâmina pelos brancos pelos e a imagem distorcida devolveu-lhe uma cara diferente da sua.Estava velho, amarelo (aquele amarelo da morte) minado pela vida, cansado. Acabou de arrancar os últimos fios e lavou a cara. Sentiu-se melhor, o outro que estava no espelho já estava mais parecido com ele. Sorriu-lhe e despediu-se dele. Nunca mais se veriam, pensou!
Saiu e começou a caminhar, seria a última vez que fazia aquela viagem. Quando olhou para trás, o outro, o do espelho estava atrás dele, segredou-lhe qualquer coisa e riu, riu muito e empurrou-o suavemente.
Quando chegou à casa amarela já estava decidido e não hesitou. Saltou para uma das camisas ficando ali pingando tristemente. Quando a Ermelinda chegou cheirando a sabão lavado e o levou junto ao resto da roupa já não tinha azia. Apertou-se de encontro a ela segredou-lhe docemente ao ouvido que nunca mais os comboios lhe pareceriam almas penadas gemendo…
Quando o outro, o do espelho, passou por eles apitou suavemente e continuou a rir..


Vitor Barros