segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

V-MEMÓRIAS

“Casei a três de Dezembro de mil novecentos e cinquenta e um e logo no dia a segui, de manhã, fui à água à Fonte com um cântaro em cima dos ombros e um balde nos braços. Tinha de subir uma grande ladeira antes de chegar a casa cansada e carregada como um burro de carga. Durante o dia quando o teu pai ia trabalhar e eu ficava em casa, de manhã ia à água e à lenha para quando a noite chegasse começar a fazer as papas. Eram feitas num tacho de arame amarelo no fogo a lenha, com um candeeiro de petróleo ao lado, numa fornalha que está no alpendre e que ainda hoje lá podes ver.
Á noite deitava os grãos de molho e de manhã começava a mesma vida: Punha os grãos a cozer e enquanto eles coziam ia à lenha pelas terras em volta.
Deixava ficar a panela de barro em cima do fogão e eles lá ficavam cozendo…Chegava com a lenha e lá ia buscar outro cântaro de água para de tarde ir trabalhar e vá de assoprar o fogo para os grãos cozerem. Ás vezes já estava quase apagado, e os grãos se deixassem de cozer encruavam e já não se davam cozidos…porém estava sempre a púcara de água ao lado da panela para ter quente e não se deitar água fria… e era assim a minha vida e foi assim ao longo de alguns anos. De noite, enquanto as papas arrefeciam, moía o milho para as papas do dia seguinte…voltando aos grãos, por vezes tinham de se esfregar com uma rolha de cortiça para ficarem um pouco mais macios e com umas pedrinhas de sal. Depois tirava-lhes as peles para irem para a panela já um pouco mais macios e cozerem um pouco melhor. O seu tempero quase sempre era um pouco de azeite, quando a fervura levantava, e depois um bocadinho de toucinho e chouriço quando havia. Quando não havia era só com azeite. Mais tarde nasceu a tua irmã e a vida continuou igual e por vezes ainda pior. No Inverno por vezes não havia trabalho, chovia e fazia frio. As coisas que tinha eram muito poucas para nos proteger do frio, a lenha estava molhada e meio verde. Naquele tempo era muito raro arranjar lenha…Quem não tinha terras com árvores ia ás das outras pessoas mas quase sempre às escondidas pois a lenha era na altura um bem raro e precioso, era mesmo muito complicado…. As roupas da tua irmã eram secas ao pé do fogo, por vezes em cima dos joelhos, para apanharem mais calor. Não havia muita roupa e a pouca que havia não conseguia secar. Punham-se as fraldas, que se chamavam cueiros, uma de pano fino e outra de flanela entre as nossas mantas para secarem com o nosso calor. No berço para ensopar a urina púnhamos uns bocados de roupa como a fralda da camisa do pai ou as calças…pois não havia nada, nada! A tua irmã passou muito frio especialmente no tempo da apanha da azeitona. Eu tinha de a levar comigo, por vezes ia enrolada nas sacas que levava para as despejar. Enfim as pessoas da época de agora não sabem dar o valor à vida e nem lhe parecem que isto seja verdade. Mas isto é só uma pequena amostra e quando me ponho a pensar o que passei aqui nesta mesma casa dava para muitos, muitos livros. Pois passei por tudo um pouco, mas também digo, tive sempre pessoas mais velhas que me visitavam e aconselhavam pois havia amizade e solidariedade entre as pessoas como agora já não existe. “

Memórias da minha mãe 1951/52

Até breve!

sábado, 12 de janeiro de 2008

IV- O COMBOIO

Guardei o bilhete no interior do bolso do casaco e só então reparei no estranho sorriso do esquálido funcionário que mo entregara. Magro, muito alto, com a boca ao lado, uma cicatriz atravessando uma das faces e um olho negro e inchado de onde escorria um já seco fio de sangue! Num canto do cubículo onde se sentava, as teias de aranha tinham coberto tudo de longos e emaranhados fios cinzentos. Uma pilha de jornais antigos e duas velhas cadeiras acomodavam um velho e negro chapéu. Parecia que tinha estado à minha espera e que havia anos que não atendia ninguém nem saía daquele buraco! Parecia na sua boca negra e torta que saboreava a minha chegada como se eu fosse o dia da sua salvação da sua libertação.
Entrei no comboio e sentei-me no primeiro banco que achei disponível. Ao meu lado, reparei depois, uma mulher loura, de desbotado vestido azul e longas unhas salpicadas de vermelho, olhou-me com espanto e sorriu-me iluminando uma enorme boca desprovida de qualquer beleza ou emoção. Todos os lugares estavam ocupados dentro da enorme carruagem! Uma aragem a loucura entrava pelas janelas abertas e todos me sorriam e parecia quererem fazer-me festas e perguntas. Parecia que havia anos que ninguém entrava naquele comboio.
Partimos e imediatamente me apercebi de que algo de estranho se passava. O comboio não circulava como todos os comboios em que anteriormente andara. Parecia que andava para trás e a uma velocidade tal que lá fora tudo parecia voar tentando acompanhar-nos mas tudo desaparecia desfeito e engolido por uma imensa nuvem de pó. Estranhamente ninguém parecia reparar ou estranhar esse facto e quando me levantei para observar melhor o que se passava, todos os restantes estranhos passageiros se levantaram ao mesmo tempo parecendo irem precipitar-se furiosos na minha direcção.
Tornei a sentar-me o que fez com que todos novamente e em simultâneo o fizessem também e só então reparei melhor na minha companheira de viagem. Parecia ler uma revista e apesar de ser uma revista em bom estado, tratava-se de um número muito antigo com talvez mais de vinte anos de uma publicação que já há muito saíra de circulação. No banco ao lado um sujeito vestido de amarelo abria e fechava as mãos sem parar, enquanto ao seu lado uma rapariga parecia estar a pentear-se utilizando uma das mãos como um minúsculo espelho e a outro como um imaginário pente. Num dos bancos laterais um casal de idosos caçava moscas com um elástico enquanto mais à frente um jovem desgrenhado simulava a celebração de uma missa.
Lá fora, entretanto, a paisagem tinha-se transformado. O verde das árvores, o colorido da vegetação e das flores, fora substituído por uma terra negra e fria sem sinal de vida. Ao fundo um vermelho sangue parecia ter desabado de um sol longínquo. Enormes pássaros vermelhos voavam sobre nós enquanto nos aproximávamos do imenso mar de fogo que no horizonte se desenhava.
Levantei-me e caminhei um pouco pelo corredor tentando chegar à porta e sentindo-me perseguido pelo olhar de todos os restantes ocupantes. Quando finalmente lá cheguei espreitei e encostado a ela, alto e muito magro com a boca ao lado e teias de aranha no fio de sangue que lhe escorria do negro olho, o esquálido funcionário que me tinha vendido o bilhete esperava-me!
Surpreendido e sem tempo para reagir senti-me agarrado pelo pescoço e arremessado voando porta fora em direcção ao imenso lago vermelho de sangue. Por um canto do olho ainda o consegui ver a avançar no interior da carruagem onde toda a gente ria e gritava alegremente. A orquestra começara a tocar e ele com um olho raiado de sangue, negro e cheio de teias de aranha, de cicatriz e boca negra ao lado, dançava com a senhora loira e à volta todos batiam palmas, gritavam e cantavam pulando.
Levantei-me e caminhei apressado. Cheguei à estação, pedi novo bilhete e fiquei esperando, de olho negro, cicatriz na cara, levando numa das mãos, uma nova revista e na outra um lindo vestido azul salpicado de unhas vermelhas….

Até Breve.....