sábado, 12 de janeiro de 2008

IV- O COMBOIO

Guardei o bilhete no interior do bolso do casaco e só então reparei no estranho sorriso do esquálido funcionário que mo entregara. Magro, muito alto, com a boca ao lado, uma cicatriz atravessando uma das faces e um olho negro e inchado de onde escorria um já seco fio de sangue! Num canto do cubículo onde se sentava, as teias de aranha tinham coberto tudo de longos e emaranhados fios cinzentos. Uma pilha de jornais antigos e duas velhas cadeiras acomodavam um velho e negro chapéu. Parecia que tinha estado à minha espera e que havia anos que não atendia ninguém nem saía daquele buraco! Parecia na sua boca negra e torta que saboreava a minha chegada como se eu fosse o dia da sua salvação da sua libertação.
Entrei no comboio e sentei-me no primeiro banco que achei disponível. Ao meu lado, reparei depois, uma mulher loura, de desbotado vestido azul e longas unhas salpicadas de vermelho, olhou-me com espanto e sorriu-me iluminando uma enorme boca desprovida de qualquer beleza ou emoção. Todos os lugares estavam ocupados dentro da enorme carruagem! Uma aragem a loucura entrava pelas janelas abertas e todos me sorriam e parecia quererem fazer-me festas e perguntas. Parecia que havia anos que ninguém entrava naquele comboio.
Partimos e imediatamente me apercebi de que algo de estranho se passava. O comboio não circulava como todos os comboios em que anteriormente andara. Parecia que andava para trás e a uma velocidade tal que lá fora tudo parecia voar tentando acompanhar-nos mas tudo desaparecia desfeito e engolido por uma imensa nuvem de pó. Estranhamente ninguém parecia reparar ou estranhar esse facto e quando me levantei para observar melhor o que se passava, todos os restantes estranhos passageiros se levantaram ao mesmo tempo parecendo irem precipitar-se furiosos na minha direcção.
Tornei a sentar-me o que fez com que todos novamente e em simultâneo o fizessem também e só então reparei melhor na minha companheira de viagem. Parecia ler uma revista e apesar de ser uma revista em bom estado, tratava-se de um número muito antigo com talvez mais de vinte anos de uma publicação que já há muito saíra de circulação. No banco ao lado um sujeito vestido de amarelo abria e fechava as mãos sem parar, enquanto ao seu lado uma rapariga parecia estar a pentear-se utilizando uma das mãos como um minúsculo espelho e a outro como um imaginário pente. Num dos bancos laterais um casal de idosos caçava moscas com um elástico enquanto mais à frente um jovem desgrenhado simulava a celebração de uma missa.
Lá fora, entretanto, a paisagem tinha-se transformado. O verde das árvores, o colorido da vegetação e das flores, fora substituído por uma terra negra e fria sem sinal de vida. Ao fundo um vermelho sangue parecia ter desabado de um sol longínquo. Enormes pássaros vermelhos voavam sobre nós enquanto nos aproximávamos do imenso mar de fogo que no horizonte se desenhava.
Levantei-me e caminhei um pouco pelo corredor tentando chegar à porta e sentindo-me perseguido pelo olhar de todos os restantes ocupantes. Quando finalmente lá cheguei espreitei e encostado a ela, alto e muito magro com a boca ao lado e teias de aranha no fio de sangue que lhe escorria do negro olho, o esquálido funcionário que me tinha vendido o bilhete esperava-me!
Surpreendido e sem tempo para reagir senti-me agarrado pelo pescoço e arremessado voando porta fora em direcção ao imenso lago vermelho de sangue. Por um canto do olho ainda o consegui ver a avançar no interior da carruagem onde toda a gente ria e gritava alegremente. A orquestra começara a tocar e ele com um olho raiado de sangue, negro e cheio de teias de aranha, de cicatriz e boca negra ao lado, dançava com a senhora loira e à volta todos batiam palmas, gritavam e cantavam pulando.
Levantei-me e caminhei apressado. Cheguei à estação, pedi novo bilhete e fiquei esperando, de olho negro, cicatriz na cara, levando numa das mãos, uma nova revista e na outra um lindo vestido azul salpicado de unhas vermelhas….

Até Breve.....

43 comentários:

Bichodeconta disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bichodeconta disse...

Esta escrita é-me demasiado familiar, como é que não me tinha apercebido de que aconteceu aqui uma metamorfose.. Terminou com um texto que acabo de reler com lágrimas nos olhos e com a mesma emoção, começa da melhor forma possível..Porque as pessoas não morrem, circulam por dentro de nós, em contramão.. espero que nos possamos encontrar muitas vezes por aqui, escreve demasiado bem para que lhe perca o rasto..E depois, diga á Laura, carrega consigo a cor dourada do trigo, a limpidez da água das fontes..Em si, ou em ti há concentrados todos os ingredientes de que se fazem os grandes escritores, os grandes contadores de histórias.. Num abraço apertado e sentido, fica a promessa de voltar e o desejo de merecer a sua(tua) visita... ..Eu não escrevo nada de especial, mas gosto de o fazer mesmo que só para mim... Um beijinho.. Estou a pegar na tua mão, mas com vida....Porque com vida quero estar e sentir...

Isamar disse...

Mas tu fazes-me cá uns textos que me põem a chorar, conterrâneo! Leio e vejo a vida a passar.Estou no comboio e não quero encontrar o esquálido funcionário da estação. Por enquanto, quero agarrar bem o banco onde viajo e continuar a ver a paisagem que corre apressadamente através dos vidros. Esta viagem é tão rápida!Escurece tão depressa que não temos tempo de tomar-lhe o gosto.
Deixo-te beijinhos e desejo-te um bom fim de semana. Como sabes, voltarei algumas vezes mais. E deixarei rasto. Se Deus quiser...

margusta disse...

Olá Vitor,
...que bom ler-te!..Que bom encontrar-te!...
Escreves muito bem!...Tens uma excelente imaginação...senti-me transportada para esse comboio...foi como se estivesse lá, tal é o teu poder de descrição.
Fiz contigo essa viagem no tempo...

Um beijo e um bom fim de semana !

Maria disse...

Li o teu texto como se estivesse (quase) a ver um filme. Um filme de vida e de morte. Um filme que pode ser o filme da vida de qualquer um de nós.
Retenho o ciclo.....

Um abraço

Elvira Carvalho disse...

Gostei do texto. Muito. Mas não quero apanhar esse compoio tão cedo. Pelo menos não voluntáriamente.
Muito grata pela sua visita, lá no meu cantinho.
Bom fim de semana.
Um abraço

Bula disse...

Obrigada pela partilha da nova morada. E obrigada por este "passeio" de comboio.

Um beijinho conterrâneo

Bichodeconta disse...

Passo de pantufas para não te acordar.. Procura, á tua volta deixei um mimo e um abraço, amanhã volto serenamente..

Isamar disse...

Vim ao teu encontro, Vítor. Um pouco antes da hora do almoço, apeteceu-me reler as tuas palavras. Sabe tão bem, a tua escrita. Se o Gabo soubesse da tua paixão!

Beijinhosssss

lena disse...

Vitor, querido amigo, o que acabo de ler tem um forte valor literário.

descrever assim a viagem de um tempo, fora do tempo, é ter muita sensibilidade, muito sentir, é ser um grande escritor

parabéns!

deixei-me levar pela comboio e quase que não me apetecia sair...

lia e pensava se existia:


Não existo


esqueci-me quem sou e onde estou
da vida espero a morte
neste estranho mundo
onde os sonhos acontecem e passam a correr
a loucura apodrece em mim
num olhar vago rolando no chão
entre o dia e a noite
caindo nos restos da vida que sobrou
emergindo nos silêncios
das sombras insensíveis
de tudo ficou um grito
um grito de vida,
a vida pela morte


l.maltez


ler-te é um prazer, é sentir, é um grito de emoção

abraço-te ternamente

beijinhos

lena

Maria disse...

Fantástico! Realmente, cada um tem a sua forma muito própria de escrever. Eu seria incapaz de escrever algo assim e admiro imenso quem o consegue fazer e mais ainda a tua versatilidade pois consegues "tocar vários instrumentos". Ora são memórias, ora como desta vez um texto cheio de magia e "nonsense".
Um abraço grande.

Carracinha Linda! disse...

Caramba!!!! Eu ando mesmo com a cabeça no ar. Como é que não me apercebi que este é o novo poiso do Cusco?????!!!!!

Peço desculpa por isso.

Li esta viagem de comboio... e quase parecia que conseguia ouvir o barulho do comboio.

Excelente texto, como habitual.

Beijinhos

Bichodeconta disse...

Passei no cusco, tentei comentar, tinha prometido não deixar a tua mão e não permitir que chorasses sózinho, entrei pela janela, aqui estou ao teu lado a ler-te , a saborear o que com tanta sensibilidade faz..Um abraço, ell

António disse...

Olá, Vítor!
Obrigado pela visita.
Já vi que tens um texto novo, mas como vou começar a fazer mudanças totais no meu material informático, só virei ler calmamente quando estiver com tudo instalado e configurado a meu gosto.

Abraço

António disse...

Afinal, antes de apagar as luzes provisosiamente, não resisti a vir ler este teu texto.
E estive a ler o Vitor que antes conheci como Cusco.
Uma linguagem muito própria, com um "non-sense" feito de mistura de lógicas, de memórias, de metáforas e, acima de tudo, de uma beleza estética notável.
Não sou homem de Letras nem sei fazer crítica literária. Formei-me e vivi nas Matemáticas e nas Engenharias. Gosto da clareza das escritas simples e meticulosas.
Mas também gosto muito do que escreves...

Um abraço

Isamar disse...

Vim ao teu encontro, ao sabor das tuas palavras, às imagens que me passam como filme à medida que te leio, ao aroma que exala de cada parágrafo e penso nas flores, nas nossas flores.
Deixo-te beijinhos e um abraço cheiinho de amizade serrana.

Pandora disse...

Foi uma delicia ler as suas palavras...entrei nesse mundo...
beijos...muitos...

Isamar disse...

Novidades? Conta! Conta!
Quem dá conta de tudo és tu. Ah, maroto!
Beijinhosssss

Laura disse...

Ai rapaz, e venho eu de escrever sobre a morte de um amigo que se aproxima!...

Já expliquei no meu post em resposta ao teu comentário que depois pergunto à neide (já dorme há um ror de tempo!) como fazer para a foto ficar bem, mas eu lembro de ela andar onde se arranjam as fotos aumentam alargam estreitam, etc e ficou bem a cem por cento, asism também vais conseguir...se não conseguires mais vale pedir ajuda à pariga que elas por vezes sabem disto melhor que nós!...
Beijinho a ti...

Menina Marota disse...

Uma viagem ao interior da tua alma, onde o terror, por qualquer mistério obscuro, encetou uma viagem purificadora...

Uma forma excelente de prosa.

Um abraço e bom fim de semana ;)

Isamar disse...

Fiquei curiosa.Quero as novidades.
Beijinhossssss

Teresa David disse...

Sempre gostei de ler os teus textos que me parecem ficariam tão bem compilados e publicados em livro. Ainda continuo a achar muito mais agradável ler em livro refastelada na cama ou á mesa da esplanada do que no computador e eles merecem ser publicados!
Parabens
Bjs
TD

Anônimo disse...

Olá!
É muito bom voltar a escrever no epaço internaútico...
Já o coloquei nos link´s...!
Continuação de boas ideias, pensamentos, reflexões e memórias!!!

Até breve!
www.alma-algarvia.blogspot.com

Jonice disse...

Oi, Vitor!

Que alegria receber o convite do Cusco para vir cá conhecer esta casa, cujo nome, imagens com palavras, não poderia ser melhor. Pois creio que já conheces minha opinião sobre teu escrever ter a plena capacidade de fazer-me ver imagens quando leio.

Quando comecei a ler-te sensações de G.G.Marquez começaram também a acompanhar-me... Pronto! Aqui está o desenho se completando.

Este comboio fez-me fazer o percurso uma vez mais porque é muito bom ler-te e em seguida relar-te.

Um beijinho :)

Gata Verde disse...

Eu sabia que voltarias...ainda bem que o fizeste!

Beijinhos e bom fds

MRC disse...

Bem vindo e um abraço de até já

MRC disse...

Bem vindo e um abraço de até já

Rafeiro Perfumado disse...

Arrepiante, caro amigo. Amanhã a viagem Sintra-Lisboa vai ter outra emoção! ;)

Cusca Endiabrada disse...

Depois de ter sido aliciada a conhecer o dono do cusco, fiz o percurso indicado e cheguei aqui apenas com o propósito de dizer:

- "mas que belo dono o do Cusco!"

Claro que como cusca que sou, não ia deixar de matar a curiosidade e aproveitei para me deliciar com este extraordinário texto!

E assim, pé ante pé, saio de mansinho não sem antes olhar em todas as direcções, não venha uma dama de unhas pintalgadas, seguida dum pároco a pregar-me sermão ou dum asqueroso revisor reclamar que entrei aqui sem comprar bilhete!

Ah! Vou mas volto!!!

Rosa disse...

Olá, dono do Cusco.
Ainda bem que "voltaste".

Isamar disse...

Olá, Vítor!

Passei pelo teu conterrâneo do Alma Algarvia. Tem lá o meu link antigo. Diz-lhe que o corrija, se faz favor. É que ele não deixa comentar, o danado. Por isso, tive de usar esta via. Gostava tanto de lá deixar uma palavrinha discreta!

Deixo-te beijinhosssss

Bloga Comigo disse...

Talvez tenha vindo para ficar se quiseres blogar comigo.Eu estou disposta a blogar contigo.
Bjos

bettips disse...

Um bem comum que nos fizeste!
Voltar. A sensibilidade de lembrar, espantar os gritos de dentro de nós.
(há uma porta e um cheiro a flores lá de dentro...)
Abç

Pandora disse...

...não me canso de te ler...
beijos...muitos...

Alberto Oliveira disse...

... uma viagem de combóio onde a monotonia não tem assento. Se na CP fosse assim, eu era cliente assíduo. Assim, vou "viajando" por aqui.

abraço

Isamar disse...

Quem pode cansar-se de te ler? Numa tarde em que a nostalgia caiu, vim ao teu recanto, reencontrar o som, o tom, o cheiro das flores que cobrem os valados da nossa terra.

Beijinhosssss

Gata Verde disse...

Para quando o final?

Beijinhos e bom fds

disse...

Olá Vitor. Não nos conhecemos, embora haja já algum tempo que ando no rasto daquilo que escreves. Cheguei tarde à primeira morada, que encontrei já vazia. Há dias fiquei impressionado com um comentário feito, diz quem conhece, pelo dono do famoso cusco. È exactamente esse comentário, feito à história da avó Maria Isabel, no sophiamar, que hoje me levou a apanhar o comboio e tentar comentá-lo… numa pequena viagem.
Meu amigo… posso dizer-te que, no que respeita à nossa infância, temos efectivamente bastante em comum. A minha infância foi exactamente como a tua, com a única diferença (mais feliz para mim) de que o meu pai não emigrou para a França e ficou por cá, até partir, há meia dúzia de anos. Com ele aprendi também tudo o que referis-te no comentário. Enquanto o li (e reli), voltei igualmente à minha infância. Nos campos, hoje desertos e silenciosos, voltei a ver tal como há perto de quatro décadas, largas dezenas de pessoas na labuta do campo. Centenas de animais sobressaíam na verdura Março, ou confundiam-se com o amarelo torrado de Junho. O silêncio actual deu repentinamente lugar a uma enorme e saudável algazarra. O “berrar” contínuo das ovelhas e borregos; a música de centenas de chocalhos, que libertavam dezenas de notas diferentes; o som agudo e inconfundível das esquilas e guizos, que machos e mulas traziam dependurados nos cabrestos de “antrolhos” enfeitados; o dlom dlom dos “raboleiros” das vacas que se ouviam a quilómetros de distância; o “azurnar” lento e preguiçoso dos burros; o “gornido” agudo e aflitivo do pequeno porco que levara uma trombada doutro mais forte, ao tentar disputar uma lesma ou uma cabeça de jarro; o ladrar incansável e repetitivo dos cães; a algazarra de milhares de pássaros; o grito que a águia soltava lá do alto, enquanto voava em círculos apertados e subia cada vez mais; o grasnar rouco e agoirento de bandos de corvos; o movimento rápido e silencioso duma cabrada, da qual só nos apercebíamos quando uma cabra espirrava a escassas dezenas de metros, ou quando ouvíamos o pssst… pssst do cabreiro a advertir o deslize de um ou outro animal. Se escutássemos com atenção, registaríamos ainda em pouco tempo, um reportório considerável de quadras e cantigas ao desafio, que entoavam um pouco por todo o lado. Os seus ecos confundiam-se com o praguejar do homem que se tinha desentendido com os animais que utilizava nas lides do campo, ou com os berros da mãe que bradava aos filhos que tinham ido “ó nino”, ou andavam chafurdando atrás dos peixes-sapos num pego do barranco próximo.
Tal como tu, também eu, enquanto estive a ler o teu comentário, estive sempre contigo… lá num outro lado da serra!
Aqui fica igualmente o convite para, se assim o entenderes, passares um dia lá pela fronteiraserra.blogspot.com
Um abraço.

Bichodeconta disse...

Vem buscar um abraço que fica aqui á tua espera.. É de amizade.. Um beijinho, ell

ContorNUS disse...

Gostei de o ler...

voltarei...

Isabel disse...

Olá Vitor, olá amigo cusco.
Bom voltar a ler-te.
Achei intrigante a tua descrição desse comboio, gostei de imaginar contigo o vestido desbotado, as unhas vermelhas, as teias de aranha,o olho negro, o lago de sangue e no meio de tudo isso uma orquestra e tonda a gente rindo e dançando alegremente...
Gostei que no fim tivesses trocado de bilhete, na vida real como nas estórias é-nos dá-da por vezes a hipotese de trocar de bilhete... eu já a tive.

Isto tudo para dizer que gosto mesmo muito de te ler e que acho que tens uma talento e uma sensibilidade especial.

Um abraço e desculpa a ausência, foi por ter estado doente não foi voluntária.

Isabel

augustoM disse...

Parece uma adaptação da barca de Caronte.
Um abraço. Augusto

Isamar disse...

E para quando um post novo?
Já vai sendo tempo de nos dares mais um dos teus belos textos.

Beijinhosssss