quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Fernanda:

Há coisas que se nos prendem à pele e que nunca mais nos largam. São imagens, sons, cheiros. Por vezes pequenos gestos, perguntas que nos fazem, conversas que ouvimos. Hoje estava a beber um café e lembrei-me dela. Não sei porquê nem o que me levou a tal. Mas de repente: zás. E lá estava ela ao meu lado a olhar-me. Nunca mais a vi, nunca soube o seu nome e por vezes duvido até que tenha mesmo existido. Quando essa dúvida me assalta abro a carteira e procuro o seu contorno lá no fundo, naquele compartimento onde guardo alguns papéis que de vez em quando me fazem falta. E ela lá está, redonda, sorrindo-me. Fico contente por a ter ali e coisa estranha, já em algumas situações em que me tenho sentido mais em baixo, triste ou carregado de problemas e incertezas, o seu contacto, o senti-la, pegar-lhe e tocar-lhe me tem dado alívio quase imediato a esses padecimentos. Já a guardo há alguns anos, não sei bem quantos, nem isso é importante. Foi num Domingo. Tinha ido à missa e a igreja estava completamente cheia. Bonita, toda enfeitada, uma suave música de fundo antecipava a chegada do padre. Era Domingo mas não era um Domingo qualquer. Era Domingo de Páscoa. Tudo em redor era festa e alegria. A procissão sairia em breve. Os foguetes madrugadores tinham acordado a populaça que armada de uma enorme fé em breve se concentraria no adro da igreja, preparando gargantas, para desalmadamente cantarem e gritarem: Aleluia, Aleluia.
Fui cedo como habitualmente gosto. Com tempo para ver, ouvir e apreciar a alegria que esse dia deposita nas pessoas. Antes da missa começar a igreja já estava cheia. Abarrotava. Quando a cerimónia começou dificilmente se conseguiria arranjar lugar para mais alguém. Foi então que a vi. Estava ao meu lado, de pé, apresentando um grande sofrimento e apoiada numa bengala. Curvada pelo peso da idade. Vestia uma saia preta, uma blusa branca e um casaquinho também preto por cima. Ao peito um fio com uma medalha com dois corações entrelaçados. Por baixo dos corações a frase: Nasci para ti. Foi nesse momento que o nosso olhar se cruzou. Sorriu. Esse sorriso atravessou-me todo e ficou como que semeado em mim. Nunca tinha sentido um arrepio tão grande pelo meu corpo, uma sensação de pureza tal que parecia fazer-me levitar. Desviei o olhar mas o sorriso continuava a morar em mim. Levantei-me e dei-lhe o meu lugar sentado. Fiquei de pé. Agradeceu-me gentilmente e eu continuei embrulhado na magia daquele sorriso. A missa continuou. Ao meu lado ela rezando. Ajoelhando-se. Comungou. A certa altura via-a jogar a mão ao peito e à medalha que lá tinha. A missa acabou e ouve a confusão da saída. De repente senti uma mão a agarrar a minha e algo redondo e metálico a ser depositado nela. Fechei a mão involuntariamente e olhei em redor. Não precisei de olhar para saber o que era. Na confusão da saída tentei alcançá-la. Agradecer-lhe, dizer-lhe que não podia aceitar. Não consegui. Avistei-a já na porta de saída. Desenvolta parecia atravessar a multidão. Parecia passar pelas pessoas sem lhes tocar. Voltou-se para trás e sorriu novamente. Nunca mais a vi. Por vezes tenho dúvidas de que tenha realmente existido. Outras vezes olho e ela está ao meu lado sorrindo-me. Outras vezes está guardada na carteira.
Hoje quando bebia o café senti-a a meu lado. Tocou-me suavemente na mão e disse-me:
-Dá-lha…
Tornei a olhar e já lá não estava. Um sol imenso tomara conta de mim e uma paz milagrosa envolvia-me. Envolvia-nos aos dois. Estás a meu lado e sorris. O mesmo sorriso lindo e terno de há cinco, dez, quinze, vinte anos. Pego-te na mão e deixo lá a medalha:
-Nasci para ti

terça-feira, 28 de junho de 2011

A Segunda Morte

Ia morrer pela segunda vez e o facto assustava-o mais do que da primeira. Na primeira tinha tido uma morte suave, boa e calma, quase que a saboreara com gosto. Despedira-se de todos e partira sem qualquer remorso de cá ter estado. Desta vez era diferente. Tudo lhe parecia novo e difícil de encarar. Não que não tivesse gostado de ter morrido, mas uma certa nostalgia já o estava invadindo. Tinha morrido num dia bonito, de sol alegre e calor abundante, num dia de maré-cheia. Lembrava-se ainda bem como suara apertado naquele horrível colarinho.
Quando chegara lá encarara as coisas com naturalidade…Encontrou amigos, conhecidos, pessoas que não via há muito tempo e pessoas que francamente esperava nunca mais ver e que afinal lá estavam também. Passou os primeiros dias um bocado aborrecido, sem nada para fazer, sem conseguir conversar com ninguém, sem fome, sem sede, sem calor...sem nada. Era como se estivesse vivo, mas um vivo muito doente, quase um vivo morto, francamente que estava achando que para estar morto daquela maneira quase seria preferível continuar vivo.
Agora que ia morrer novamente estava assustado. Não sabia como seria novamente recebido, se o mesmo tédio o assaltaria se encarariam bem o seu regresso se não o considerariam um traidor às leis da vida. Não sabia bem quando seria a partida, mas iria preparar bem as coisas.Passaria pelo cemitério e iria arejar o local onde supostamente deveria estar. Tiraria aquela jarra azul que não lhe dizia nada. Arrumaria devidamente as rosas vermelhas que o vento costumava espalhar, daria uma limpeza geral. Endireitaria as fotografias, iria retirar algumas que o favoreciam menos. Deixaria ficar somente algumas e colocaria em primeiro plano aquela em que na companhia do filho, na areia da praia, cavalgavam garbosamente os seus dois cavalos amarelos. Tantas recordações de quando era vivo..! E agora ali prestes a estar morto de novo. Inconformado resolveu caminhar um pouco, sentia-se sonolento, amodorrado. O ar fresco do entardecer e o cheiro da maré vazia carregada de saudade fizeram-lhe bem, irrigaram-lhe o cérebro, os músculos atrofiados distenderam-se. Sorriu, sentou-se e esperou por eles, sabia que viriam em breve.
De repente ouviu-os aproximarem-se, sentiu-lhes a respiração o cheiro, amarelos, galopando quase sem tocar na areia, levantado uma brisa amarela.Viu-se montado num deles e o filho noutro. Passaram por ele e acenaram-lhe sorrindo. Tentou gritar-lhes mas a voz não saía. Soube então que estava morto que continuava morto e bem morto, porém os cavalos ao fundo galopando diziam-lhe que não, que era mentira que continuava vivo bem vivo…Deu uma palmada no cavalo, acelerou o galope voltou-se para trás e despediu-se de si próprio enquanto se elevava nos ares.
Nunca mais se veriam…

terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Sofá!

O Sofá I

Um casal está sentado num sofá de madeira forrado com um tecido verde com pequenas e quase insignificantes figuras. Nos pontos onde se une à madeira uma pequena fila de pequenas (minúsculas) pérolas quase se desvanece. Algum cansaço está escondido nos olhos deles. Suas mãos, calejadas, são mãos de gente trabalhadora, de gente que trabalhou muito para mais tarde terem o merecido descanso. A idade pesa-lhes, embora se mantenham de costas e de queixo erguido. O homem tem a mão pousada no sofá, num gesto convidativo, quase como que nos pedindo que ocupemos aquele lugar há tanto tempo vago pelos filhos que partiram. O papel de parede foi saindo tal qual a juventude. Suas roupas, desbotadas tais quais sonhos passados. Os sorrisos que há muito abalaram, deixando no seu lugar uma pequena (vaga) amargura.
Um primeiro plano, o casal, mãos grandes de trabalhadores, sorrisos tristes de solidão. Um segundo plano, um sofá grande com demasiado espaço. Em terceiro lugar um papel de parede a cair aos bocados como experiencias que eles jamais viveram. Ainda bem que se têm um ao outro….


(Texto da minha filha)


O Sofá


São quatro da tarde e já é Inverno. Está escuro e chove. Fortes bátegas castigam as vidraças que vão ficando embaciadas formando pequenos desenhos sem rosto que nos olham trocistas. Olho para ti e vejo que também estás a chover. Observo as tuas vidraças onde dois olhos mortiços e apagados parecem querer sacudir gotas de melancolia e tristeza muda.
O sofá onde estamos sentados é enorme. Parece que cresceu nos últimos dias. O seu tecido verde parece também um verde murcho e sem graça. Nos pontos onde se une à madeira, meio rasgado, o seu verde ainda conserva o desenho de pequenas borboletas que esvoaçam sem graça nenhuma. Continuas a chover. Em frente, a televisão também enorme continua muda e nela figuras embaciadas saltitam em redor de palmas e aplausos sem calor. Tudo triste, gasto, sem alma. Continuas a chover e a escurecer mais ainda. A rua por detrás das vidraças está deserta. Os faróis de alguns carros rompem o escuro e saltitam por entre a bátega de água que nos varre a janela de cima a baixo. Acomodo-me melhor em redor do silêncio, puxo a manta para cima dos joelhos tentando tapar a solidão que o Inverno e a chuva semeiam em mim.
Umas das pernas, a esquerda, recusa-se a acordar e castiga-me sem paixão, fortemente, como que vingando-se de maus tratos sofridos outrora. Reparo melhor na manta e vejo que também ela está gasta, desbotada, descolorida. Toco-te com uma das mãos e todo o teu eu se parece sobressaltar. O teu rosto está branco e as tuas mãos de passarinho estão cansadas. Sorris sem sorrir por entre a chuva que te invade a alma. Estamos juntos, calados, colados quase e mesmo assim o sofá não diminui de tamanho. Assusto-me quando o olho melhor e o vejo impávido e sereno, sem chuva no olhar nem dor na perna.
Lá fora a chuva torna-se temporal. Troveja fortemente e o forte colorido dos relâmpagos ilumina totalmente a rua. No tecto a luz estremece e na televisão as figuras saltitantes ficam de repente paradas e suspensas. Não gostas de trovões...nem eu! Fazem com que te apeteça chover ainda com mais força. Agora é o vento também. Forte, uivante. Fortes rajadas assobiam na janela e rastejam por baixo da porta. Levantas-te e vais lentamente caminhando até à cozinha. Espreitas pela janela e sacodes da cara os pingos que caíram pela fresta que entreabriste. Outro relâmpago ilumina as laranjeiras entrando por elas a dentro. A sua luz entristece as laranjas que se agitam desesperadas tentando manter-se de pé. Silenciosa regressas devagarinho arrastando os anos e o silêncio para o sofá. Sentas-te novamente ao pé de mim e do escuro que guardas na alma tiras três palavras simples:
-Ela vai vir!
Passo-te a mão pela cara, sinto-a fria e ainda com algumas gotas a escorrerem. Grossas e frias. Lembro-me das laranjas lutando…
-Ela via vir! Repito e aperto-te a mão com mais força.
Outro relâmpago e mais outro ainda mais forte. Um trovão enorme e medonho despenha-se sobre nós, apaga de vez a luz do tecto e faz desaparecer as palmas que saltitavam animando as figuras mudas que a televisão nos mostrava. De repente só escuro, chuva, vento.
Ficamos mais juntos durante os minutos que faltam. São quase seis horas. Cinco minutos antes das seis afastamo-nos um pouco e deixamos entre nós o espaço vago para ela se sentar.
Às seis em ponto sinto o calor da sua mão fria segurando a minha. Não falamos nem é preciso.
Começo também a chover! A nossa filha chegou.
Felizmente te temos a ti…

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

XXIII-SOU FELIZ: Não tenho sonhos...

Sou Feliz! Não tenho sonhos.


O Toino, mesmo já muito velho, jogava pedras que salvavam o monte em frente e continuavam a subir para lá do horizonte. O Toino foi sempre feliz e, contou-me ele um dia: Sou feliz porque não tenho sonhos...Sabes, os sonhos tornam as pessoas infelizes.
O Toino trabalhava hoje e amanhã não. Porque não lhe apetecia, e era feliz fazendo o que lhe apetecia. O Toino nunca casou nem teve filhos. Nunca se levantou cedo quando lhe apetecia ficar dormindo, nem foi trabalhar quando lhe apetecia ficar embebedando-se na taberna. Fumava cigarros sem filtro e cheirava a aguardente de figo. Nunca sonhou em fumar cigarros com filtro nem em beber conhaques ou uísques.
O Toino vestia-se mal e por vezes andava quase descalço e com buracos nas peúgas.
O Toino nunca sonhou em ter um fato e sapatos de verniz enfeitados com meias coloridas. O Toino nunca teve dono, nem sonhos que o levassem para lá do horizonte.
O Toino era assim. Falava muito comigo e embebedava-me de palavras.
O Toino era meu amigo. Olhava-me de frente. O Toino hoje está no lar…Ao seu lado está o Sr. Antunes que foi uma pessoa muito importante. Teve vários filhos, muitas mulheres, fumou bons charutos e vestiu dos melhores fatos. Nunca faltou no escritório e nunca se embebedou.
Teve sempre muitos sonhos que nunca o deixaram ser feliz. Esteve sempre prisioneiro deles e nem sequer aprendeu a jogar pedras. Foi sempre dono de alguém mas nunca foi dono de si próprio. O Sr. Antunes não era meu amigo, olhava-me de lado…
Ninguém vai visitar o Sr. Antunes, nem os filhos nem as mulheres, nem os charutos…
O Toino continua feliz e sem sonhos. Fui vê-lo hoje porque ele é meu amigo. Continua a cheirar a tabaco e a aguardente de figo.
Riu, riu, riu!
Pedi-lhe para me ensinar a jogar pedras que salvassem o monte em frente e continuassem a subir para lá do horizonte…Disse-me logo que sim, mas que ao Antunes não!
O Sr. Antunes estava triste, reparei. O Sr. Antunes não se ria. O Sr. Antunes não sabia jogar pedras….Nunca soubera, nem quisera saber. Não era fino!
O Toino também reparou.
Ambos reparámos que das suas meias coloridas as lágrimas caíam formando um montinho que nunca jogaria pedras para lá do horizonte…


O Toino existe e estava no lar em S.Brás de Alportel há uns dias atrás. Quando passei por lá nas vésperas de Natal disseram-me que tinha ido para o hospital em Faro...! Não sei sei o irei ver mais alguma vez! fica a minha homenagem!!!!!

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

XXII-Novamente as Palavras

Por vezes não sai nada. Uma solidão imensa embrenha-se no meu interior e seca-me. As palavras ficam murchas e vão secando e começando a cair pelas minhas paredes. Batem bruscas de encontro a elas e desfazem-se em silêncios de pó! O meu vento interior, agreste e áspero tenta varrê-las para longe da solidão que me assola. Pego nelas e arrumo-as num cantinho. Fazem um montinho, um pozinho que pouco a pouco se começa a elevar tentando sair do meu deserto interior.
Não quero secar e não posso secar. Tenho de dar vida às palavras. A inquietação começa a tomar conta de mim. As palavras quietas e adormecidas, montinhos quase de lixo e secas, prestes a desfazerem-se começam ganhar vida. Começam a ficar viçosas e a subir pelas minhas paredes. Começo a ficar nervoso, irrequieto e agitado. Mexo-me, remexo-me e torço-me para todos os lados. Pego então nelas e ficamos a sós. Nessa altura tudo deixa de existir, nada mais à minha volta faz sentido. O mundo em nosso redor como que acabou. Não vejo mais nada, nada mais oiço, não tenho sede, nem fome nem sono. Eu e as palavras. Eu a tratar delas a regá-las a alindá-las tentando fazer a mistura certa as proporções certas! Elas acariciando-me fazendo-me cócegas nos dedos, escorregando pelo gargalo da caneta, pela lisura do lápis e colorindo o branco triste da página. Finalmente sinto-me novamente vivo! A secura, a aridez e a solidão que varria o meu interior transformaram-se num riacho fresco e fértil. Nada mais existe, todo o mundo desapareceu. Só eu e elas, só elas e eu. E o silêncio. Em frente o azul do mar e no azul do céu o risco feito pelo grito das gaivotas. Misturo-me com elas, eu e as palavras, e sentamo-nos no risco que desenharam no ar. Balançamos as pernas de um lado para o outro como crianças felizes. Damos as mãos e começamos a rezar.
As gaivotas passam voando e sorriem para nós.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

XXI- O Tinir suave da tesoura!









O Sr. Joaquim Martins Guerreiro chamava-se Joquenito…
Era o meu barbeiro desde miúdo. Morreu há dias…
Parece-me que trinta e seis anos depois ainda continuo a ouvir o tinir suave da tesoura junto às orelhas!



Sítio do Corotelo, 28 de Maio de 1973

Eu já fui diversas vezes ao cabeleireiro. Fui cortar o cabelo quando ele já estava um pouco grande. Eu não chorei nem tive medo mas, no entanto, fazia-me impressão quando os cabelos se metiam através da gola da blusa e iam escorregando pelo pescoço fazendo comichão. Também me dava impressão o tinir suave da tesoura junto das minhas orelhas. Enquanto o Senhor Joaquim me ia cortando o cabelo eu ia conversando com ele sobre isto e sobre aquilo.
Enrolado no pescoço tinha uma enorme toalha branca onde, através do espelho, eu via as madeixas do meu cabelo preto caírem lentamente. Quando o Senhor Joaquim me acabou de cortar o cabelo, vi-me no espelho e achei que estava um pouco mais feio do que com o cabelo comprido. Depois, regressei a casa, um pouco contrariado por ter cortado o cabelo, mas contente por já estar despachado.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

XX- O CHEIRO

Quando nessa manhã acordou, mais cedo ainda do que habitualmente acontecia, cheirou-lhe logo….
Já o conhecia há mais de quarenta anos. De repente aparecia, sempre forte, intenso, meio ácido e agreste, uma mistura forte de amêndoas amargas com cinza e terra queimada, molhada…
Talvez por isso soube logo que aquele dia iria ser um dia muito mais do que quente, um dia em que o calor quase lhe queimaria a boca e secaria os lábios, um dia em que o cheiro o atormentaria, lhe provocaria náuseas, arrepios, um dia em que teria de pôr as galinhas à sombra e em que teria de regar a pequena e nova macieira que de repente lhe nascera no quintal. Esta nascera assim como que de repente, sem se dar conta de como nem porquê, sem ser semeada nem plantada. Uma manhã reparara melhor no castanho rugoso do chão e um pequeno tronco como que saído do nada sorrira-lhe com as suas folhas tenras parecendo que também elas vinham já impregnadas do cheiro…
Conhecia aquele cheiro desde pequeno, desde os tempos em que o avô o punha em cima da velha mula e atravessavam toda a aldeia, passando por dentro do velho cemitério onde o coveiro lhe vendia as galinhas. Pretas, sempre pretas e só pretas, carregando com elas o cheiro…Aí costumava apreciar as frondosas sombras derramadas sobre os lisos lajedos polidos contando-lhe o avô que a seiva dos seus antepassados as tinha ajudado a crescer e que parte daquela fresca sombra lhes pertencia.
Sempre fazendo-lhes companhia o fiel Fadista, um cão negro como a noite, trotando alegremente atrás deles. Bonito o Fadista, bom caçador, bom amigo e brincalhão e sempre pronto para uma boa briga, para uma boa corrida.
Conhecia o cheiro desde os tempos em que o avô, sentado debaixo da grande macieira, jogava pedacinhos de pão às galinhas que de tão habituadas que estavam a ele e ao cheiro, adormeciam poisadas nos seus ombros e pernas enquanto ele lhes recitava e cantava orações e canções desconhecidas. Enorme o avô, sempre o vira ali, e parece que sempre estivera ali nos quarenta anos anteriores, quieto, na sua cadeira, rodeado de galinhas pretas que alimentava desde que nasciam até que morriam. Soube depois que ao que se sabia nunca provou um único ovo que fosse, ou um só bocado de carne das suas galinhas negras, e que o seu único objectivo era vê-las crescerem, envelhecerem e morrerem, enterrando-as debaixo da cadeira onde se sentava, deixando-lhes sempre o bico de fora e que lhes continuava a empurrar pelo bico abaixo pequenos bocadinhos de pão, até muitos dias depois da sua morte.
Lembrava-se bem do cheiro, quando num dia quente como uma brasa encontraram o avô há quatro dias pendurado na velha macieira, desfigurado e sorrindo sem graça nenhuma, rodeado por meia dúzia de galinhas famintas e sedentas debicando-lhe os pés e rasgando-lhes as velhas meias cinzentas.
Chegou-lhe mais forte às narinas agora. Vinha não sabia de onde, talvez do monte em frente onde o calor iria fazer ferver as árvores recortadas no horizonte, talvez da casa em frente onde uma pequena janela entreaberta deixava antever uma pequena fresta de vida. O mais certo seria vir de dentro de si mesmo, do seu interior, onde o cheiro se poderia ter refugiado tentando fugir ao dia quente que o horizonte prometia.
Vestiu-se sem pressa, as calças velhas com o cinzento já gasto pelos dias, uma camisola branca de alças por baixo da camisa de quadrados azuis e as meias cinzentas e finas por causa do inchaço que o calor lhe estava a provocar nos pés.
Abriu a porta e o bafo quente do dia que se aproximava trouxe-lhe o cheiro mais forte ainda, moldando-lhe o sorriso amargo do dia.
O esconder do negrume da noite desembaciou-lhe a vista que lhe parecia estar a pregar partidas. Estava a vê-lo e a senti-lo, esse cheiro que o assombrava de tempos a tempos.
No seu quintal a macieira nascida do nada, crescera durante a noite tornando-se uma árvore adulta, e os seus troncos cruzando-se labirinticamente formavam centenas de forcas negras onde centenas de negras galinhas esperneavam freneticamente deixando cair dos seus bicos entreabertos pequenos pedacinhos de pão.
Sabia agora que nunca mais se iria livrar daquele cheiro, era o cheiro da morte que de vez em quando lhe recordava o seu destino.… Estava a puxá-lo, estava-lhe gravado no sangue. Avançou para a macieira, sentou-se na cadeira onde contava passar os próximos vinte anos e foi nessa altura que o ouviu:
No ramo mais alto, negro e imponente durante mais de vinte minutos cantou como nunca se ouvira um galo cantar, as mesmas canções e orações desconhecidas. Reparou que as galinhas mesmo mortas estremeciam e aconteceu-lhe o mesmo…Só que não estava morto ainda, pelo menos por enquanto, já que o cheiro ainda lhe chegava às narinas. Avançou lenta e calmamente de encontro ao destino, de encontro ao cheiro…
Ficou pendurado com o mesmo sorriso sem graça nenhuma!
Foi o avô quem, quatro dias depois o encontrou!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

XIX 25 DE ABRIL

25 de Abril

Venho desejar a todos que o cheiro da Liberdade de Abril continue sempre a perfumar o dia 25. De certeza que trinta e cinco anos atrás, muitos dos leitores deste blog viveram este dia em cheio, que o esperavam e o aguardavam! Eu, na altura era demasiado pequeno para perceber o que se estava a passar. No meio em que vivia, o obscurantismo e a longa noite fascista tudo ofuscara, tudo cegara e amedrontara. Ninguém sabia o que estava a acontecer, ninguém sabia que a revolução cheirando a cravos chegara à rua, que a Liberdade vencera a tirania.
Por isso hoje, continuo a deixar aqui os parabéns e o meu agradecimento a todos que de alguma forma com as suas ideias, com os seus protestos, com os seus pensamentos contribuíram para que este cheiro a Liberdade chegasse até nós. Deixo-vos também aqui o meu desejo e a minha esperança que as actuais gerações e as gerações vindouras consigam preservar e continuar a apreciar condignamente o que realmente significou
ABRIL.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

XVIII-ELA, O GATO, A MOLDURA….(III)

Fazia nesse dia nove meses e alguns dias que o gato não saía de casa.Não que estivesse preso simplesmente porque chegava à porta miava e voltava para trás. Nesse dia ainda a madrugada não fechara portas quando ele miou como nunca o ouvira fazer.
Acordou meio assustada, sobressaltada, sem saber porquê, achou que aquele iria ser um dia diferente.. Uma grande e redonda lua espreitava altiva no rendilhado azul-escuro do céu. Parecia-lhe hoje mais redonda e amarela do que nunca..Desde aquele dia em que se vestira de negro que andava cismando na vida. Levantava-se normalmente cedo, angustiada pela ausência do passado. Dava voltas e voltas pela casa arranjando tudo o que estava arranjado e fazendo tudo o que estava feito. Tirava o pó das molduras, na casa de banho a torneira voltara a pingar e na cozinha a torradeira tinha avariado.. num canto o bolor aparecia : verde, parecido com aqueles limos que a maré por vezes trazia agarrada à saudade.
As molduras na parede…..encanecidas, enrugadas, calejadas de cal e saudade..A gravatinha e o livro! O dia da primeira comunhão. Ele de fato, o casaquinho com as flores bordadas…!
Limpou-as novamente, cuidadosamente...com a alma escorrendo lágrimas.
Espreitou a rua, o céu o mar.. A lua desaparecera como que por milagre..e um alaranjado ténue anunciava que o sol iria talvez brilhar..
Roçou-se-lhe nas pernas, cabeceou-a com mais força, insistiu. Miou com força, mais força ainda. O gato! Que queria o gato..Estava diferente, olhava-a diferente. Nunca mais andara assim desde que voltara com eles na alma, nos olhos! Nove meses e alguns dias..
Abriu a porta e teve a certeza que aquele dia acordara diferente. Era o dia..!
O gato olhou-a sorrindo, remando com os olhos, e nove meses e alguns dias depois, ao abrir da porta, miando ao escurecer do esconder da lua e ao amanhecer do acordar do sol, saiu correndo, levando com ele os dois e remando..remando em direcção à lua. À lua...
Chegara a hora! Regou pela última vez as flores, encostou à parede caiada a cadeira com cuidado e saltou para a moldura. Aconchegou o casaquinho bordado e carinhosamente como um dia fizera, endireitou-lhe a gravata e ajeitou-lhe no braço o livrinho da primeira comunhão ….

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

XVII- ELA, ELE E O GATO...(II)

Cinquenta e três anos e três semanas depois de ter casado ainda não se considerava viúva. Nesse dia acordara cedo, muito cedo. Uma pontada nas costas e aquela irritante tosse fizera-a acordar. Espreitou por uma fresta da janela, e clareando o escuro, a redonda e cheia lua desenhava-se ao longe transpondo o horizonte.
Vestiu-se calmamente. O simples vestido cinzento de andar por casa, e deixou-se ficar em pantufas. Na casa de banho pareceu-lhe que a torneira já não pingava e num canto uma ligeira mancha pareceu-lhe bolor. O raio do bolor. Difícil de limpar …Impregnava tudo, as paredes, a roupa, quase que a alma!
Na sala a lareira ainda quente aquecia o frio que se tinha agarrado às paredes durante mais de cinquenta anos. Um resto de sopa ainda morna e com bom aspecto iria resolver-lhe o problema do almoço. Nas mesmas paredes as mesmas fotografias: O marido de fato e gravata (novo, bonito como o filho, sem bolor na alma) junto dela, (um casaquinho branco com umas flores bordadas) felizes ainda. O filho (bonito como o pai) com uma gravatinha e o livrinho de orações debaixo do braço no dia da primeira comunhão! O barco lindo (até breve) com o filho pequeno e lindo também junto dele,(Para ela ele fora sempre pequeno)
o gato! ao fundo a lua redonda, como que a esconder-se no horizonte da fotografia..
Na cozinha preparou o café. Continuava a chamar-lhe café apesar de ser leite e só um bochechinho de café.. hábitos antigos!!… Regou as flores e verificou que ainda estavam viçosas e cheiravam bem.
Foi então que começou o vento. Primeiro devagar, muito devagar, depois forte, forte, frio e quente ao mesmo tempo, estranho. Foi espreitar a rua, abriu ligeiramente a porta e nem sinal de vento. Fechou-a e quando se voltou, ele estava lá a olhá-la fixamente, suavemente, os olhos muito vivos e abertos.
Chamou-o carinhosamente como sempre fazia. Saltou-lhe para o colo feliz, olhando-a nos olhos, e foi então que ela teve a certeza: Nos seus olhos viu os dois, remavam, remavam, em direcção à lua.
Foi ao quarto e mudou de roupa. Vestiu o vestido preto e soube que cinquenta e três anos e três semanas depois tinha ficado viúva.


Continua no próximo texto.

sábado, 10 de janeiro de 2009

XVI-ELA, O GATO…(I)

No dia em que ia fazer cinquenta e três anos de casado, acordou, olhou a redonda lua e levantou-se ainda bastante cedo com o cheiro e o ruído do mar no coração.
Sorriu ao estremunhado gato, e mesmo por cima do pijama vestiu aquelas calças cinzentas que já tinha vestido ontem e anteontem. Enfiou aquele casaco castanho que no Natal lhe tinham oferecido. Ao lado um respirar suave e uma tosse envelhecida e rouca diziam-lhe que ela ainda dormia e que a constipação ou uma ligeira pneumonia continuava a morar ali.
O gato já mais acordado e felino roçou-lhe nas pernas. Sorriu olhando para dentro de si próprio e vendo a tristeza que a vida tinha deixado lá dentro. Uma torneira pingava ligeiramente, bolor num canto da casa-de-banho, velhas molduras com antigas gerações, a fotografia do filho encostado ao barco… com o gato! Ao fundo a redonda lua. Parecido com este o raio do gato! (os gatos pareciam-lhe todos iguais!) Lindo o barco! Pintado de riscas vermelhas com o nome benzido pelo padre e tudo: ATÉ BREVE (SE DEUS QUISER)
Na sala, na lareira, uma panela com um resto de sopa, sem fogo, sem chama pôs-lhe mais bolor na alma. Mais fotos, ele quando era novo, (agora acha que nunca foi novo) o filho bonito, parecido com a mãe, novo, ainda sem bolor na alma..O gato a querer aquecer a lareira.. convidando-o, chamando-o, torturando-o, envelhecendo-o.
Anos atrás acordara também com a redonda lua por cima dele e envelhecera de repente. Nesse dia, logo cedo, em que vira o filho vestir aquelas calças cinzentas e aquele casaco que a mãe lhe oferecera pelo Natal. (Nunca mais houve Natal) e que lhe respondera:
-Vou ver a Lua!
e chamando o gato, entrara no barco e remara, remara, remara…..em direcção à lua!
No dia em que ia fazer cinquenta e três anos de casada levantou-se tarde.. O frio, o reumático, o ter o tempo todo para não fazer nada..!
Na cozinha em cima da mesa flores e um bilhete: Até Breve….!
O gato também não estava lá!


(Continua no próximo texto)

domingo, 14 de dezembro de 2008

XV- PAI NATAL

Confesso que o figurão nunca me foi simpático. Talvez por me ter sido impingido nos últimos tempos, talvez por não ter pertencido aos meus amigos de infância. Ultimamente cada vez menos simpático o acho.
Agora até tem horário de trabalho e descansa à quarta-feira...
Há dias encontrei um! Fumava e bebia cerveja desalmadamente, meio escondido e sentado num daqueles bancos de pé alto. De lá, por detrás daquele esconderijo natural, envolto numa nuvem azulada de fumo e acalorado com uma desconfortável e amarelecida barba cor de açúcar amarelo, espreitava o resto do líquido no fundo do copo. De repente pareceu despertar quando a empregada do bar se aproximou, e do alto do seu posto, espreitou sem nenhum pudor natalício o bem nutrido peito da rapariga, desenhado na rijeza da fina blusa: Merda…. ! Dá-me outra que tenho de ir trabalhar…
Bebeu, fumou, foi mijar e saiu pois tinha de ir trabalhar.
Cinco minutos depois passei ao pé dele. Piscou-me o olho enquanto fazia mais um OH!OH!OH!..
Subi e fui beber uma cerveja. A rapariga já não estava lá..


PARA TODOS FICAM OS MEUS VOTOS DE UM SANTO E FELIZ NATAL.
VOLTAREI EM 2009

SE DEUS QUISER

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

XIV-PARABÉNS CINARA

PARABÉNS FILHA

No dia em que ias nascer um poderoso raio de sol passou por uma faixa entreaberta na persiana da janela e aterrou formando uma perfeita auréola circular na cama onde tinhas sido feita.
Catorze anos mais tarde vejo-te entrar pela porta da escola de cabelo ondulando ao vento, corpo esguio de criança quase adulta, sorrindo, saltando brincando...As colegas esperam-te… O toque soa e desapareces por uma porta que te há-de levar a uma aula de qualquer coisa....
Levantei-me cedo e fui preparar as coisas cuidadosamente. Ias nascer nesse dia. Saí, passei pelo quiosque e para espanto da empregada mandei embrulhar cuidadosamente o jornal do dia. Continua guardado e embrulhado com as notícias intactas para te oferecer quando chegar a altura prevista. Tens de saber como era o mundo no dia em que ias nascer...
Ainda tinha tempo, ias nascer nesse dia mas ainda faltavam umas horas como previsto...De seguida passei pela igreja, entrei e fui escolher o banco em que te irias sentar catorze anos mais tarde...Do lado esquerdo resguardado e com vista lateral para o padre Américo... Examinei a pia baptismal e provei a água que ela continha... Estava salgada e teria de ser substituída quando daqui a um mês exacto fosse o teu baptizo. Na escola apreciei as árvores por onde irias passar, os professores indispostos, os funcionários zelosos e autoritários que te esperavam, as velhas balizas desbotadas e o cesto roto de basquete que tanto te iria atrair. Na biblioteca preenchi logo a tua ficha de inscrição e reservei alguns livros que catorze anos mais tarde irias ler.
Tinha tudo pronto, estava quase na hora.
Estava lá quando chegas-te. Pequeno pedaço de carne estrebuchando pela vida, pequenos bracitos e pernas ansiosos por crescer, pequeno cérebro esperando por estímulo, pequeno mundo chegado ao mundo. Entretanto o tempo passa...
Espero por ti...ainda tenho tempo…
Hoje o sol está escondido desde manhã, escuro, envergonhado..... Nunca mais neste dia um sol radioso passou por uma faixa entreaberta na persiana da janela. Fazes hoje catorze anos.....
Espero por ti....ainda tenho tempo…
Já passei pelo quiosque e comprei o jornal do dia (não mandei embrulhar) entrei na igreja e fui espreitar o banco do lado esquerdo, resguardado de onde se vê o padre Gonçalves ( Já não é o padre Américo) a água da pia baptismal continua salobra sem sabor precisando de ser mudada..
Espero por ti. Fazes hoje catorze anos.
Na escola as árvores continuam viçosas as balizas foram pintadas recentemente e o cesto de basquete é novinho em folha e os professores continuam com a mesma cara aborrecida e os funcionários mais autoritários ainda... Na biblioteca vejo os mesmos livros, poucos mais....parece que não se usa ler.
Espero por ti. Toca a campainha e vejo-te vir por uma porta que te traz de uma aula de uma coisa qualquer.
Fazes hoje catorze anos….
Parabéns filha
PARABÉNS CINARA



Dado que de momento não tenho disponibilidade para vos visitar e comentar como desejaria, o presente texto não vai ficar aberto a comentários. Agradeço as vossas visitas e continuo a visitar-vos em silêncio.
A todos o meu muito obrigado.

Vitor

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

XIII -A SEGUNDA MORTE

Ia morrer pela segunda vez e o facto assustava-o mais do que da primeira. Na primeira tinha tido uma morte suave, boa e calma, quase que a saboreara com gosto. Despedira-se de todos e partira sem qualquer remorso de cá ter estado. Desta vez era diferente. Tudo lhe parecia novo e difícil de encarar. Não que não tivesse gostado de ter morrido, mas uma certa nostalgia já o estava invadindo. Tinha morrido num dia bonito, de sol alegre e calor abundante, num dia de maré-cheia. Lembrava-se ainda bem como suara apertado naquele horrível colarinho.
Quando chegara lá encarara as coisas com naturalidade…Encontrou amigos, conhecidos, pessoas que não via há muito tempo e pessoas que francamente esperava nunca mais ver e que afinal lá estavam também. Passou os primeiros dias um bocado aborrecido, sem nada para fazer, sem conseguir conversar com ninguém, sem fome, sem sede, sem calor...sem nada. Era como se estivesse vivo, mas um vivo muito doente, quase um vivo morto, francamente que estava achando que para estar morto daquela maneira quase seria preferível continuar vivo.
Agora que ia morrer novamente estava assustado. Não sabia como seria novamente recebido, se o mesmo tédio o assaltaria se encarariam bem o seu regresso se não o considerariam um traidor às leis da vida. Não sabia bem quando seria a partida, mas iria preparar bem as coisas. Passaria pelo cemitério e iria arejar o local onde supostamente deveria estar. Tiraria aquela jarra azul que não lhe dizia nada. Arrumaria devidamente as rosas vermelhas que o vento costumava espalhar, daria uma limpeza geral. Endireitaria as fotografias, iria retirar algumas que o favoreciam menos. Deixaria ficar somente algumas e colocaria em primeiro plano aquela em que na companhia do filho, na areia da praia, cavalgavam garbosamente os seus dois cavalos amarelos. Tantas recordações de quando era vivo..! E agora ali prestes a estar morto de novo. Inconformado resolveu caminhar um pouco, sentia-se sonolento, amodorrado. O ar fresco do entardecer e o cheiro da maré vazia carregada de saudade fizeram-lhe bem, irrigaram-lhe o cérebro, os músculos atrofiados distenderam-se. Sorriu, sentou-se e esperou por eles, sabia que viriam em breve.
De repente ouviu-os aproximarem-se, sentiu-lhes a respiração o cheiro, amarelos, galopando quase sem tocar na areia, levantado uma brisa amarela. Viu-se montado num deles e o filho noutro. Passaram por ele e acenaram-lhe sorrindo. Tentou gritar-lhes mas a voz não saía. Soube então que estava morto que continuava morto e bem morto, porém os cavalos ao fundo galopando diziam-lhe que não, que era mentira que continuava vivo bem vivo…Deu uma palmada no cavalo, acelerou o galope voltou-se para trás e despediu-se de si próprio enquanto se elevava nos ares.
Nunca mais se veriam…

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

FÉRIAS




Durante as primeiras semanas de Setembro o dono deste blog vai estar de férias.
Vai estar junto às gaivotas e vogando nas ondas.
Vai estar sem computador, sem Internet, nem telemóvel.

Para todos deixo os meus desejos de tudo de bom e até breve

SE DEUS QUISER

Vitor Barros

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

XII- CHUVA QUENTE

A igreja estava apinhada de gente que derramava suor em fio, naquele dia de Julho em que o casamento se iria efectuar. Logo pela manhã um cheiro acre, mórbido de cinza queimada, deixara no ar a sensação do que iria acontecer e que iria mudar a vida da aldeia para sempre. Ao acordar, suado e pegajoso, recordou-se de imediato que tinha chegado esse dia anunciado desde há muito. Ia casar e conforme sempre soubera, esse dia iria ficar para sempre marcado na história da terra e de toda a gente que iria assistir ao triste e trágico acontecimento.
Desde sempre sabia que aquele dia iria novamente chegar. Tinha-o esperado e tinha-o receado, tinham-lho descrito, tinha-o vivido já outrora.
O sol acordou-o completamente e, logo de manhã, tornou-se tão abrasador que tudo à sua volta parecia estar a suar e a derreter. Nunca um dia de Julho acordara tão quente.
Agora que estava na igreja e que a cerimónia iria começar mais a sensação de desconforto e mistério se adensava à sua volta, tudo iria recomeçar em breve.
Para cima de quarenta e tantos graus afogavam os muitos convidados que tinham aceite estar presentes. Moviam-se inquietos e falavam com bafos de suor a escorrerem pelos engomados colarinhos.
O primeiro trovão surgiu exactamente quando o Padre, de negro vestido, saía da sacristia. Enorme, e negro o padre, acordara há breves momentos.
Negro e grande, o trovão, ribombando enorme, rolou por cima da igreja abrindo sulcos na parede testemhunha de séculos e séculos de mistérios.
Todos estremeceram e olharam para o padre que se preparava para começar a cerimónia, quando outro medonho trovão arrancou a grande e pesada porta da igreja e trouxe os primeiros pingos de chuva. Grossos, enormes, brancos como dedos de menino, precipitaram-se em tremendo aguaceiro sobre a terra que parecia ferver. O barulho ensurdecedor depressa abafou todas as vozes e as primeiras preces começaram a desenhar-se nas caras angustiadas. Pela porta derrubada da igreja podia ver-se o exterior, onde um escuro aterrador fazia lembrar um imenso inferno. Em breve começaram a passar as primeiras árvores arrancadas pela fúria da chuva. Enormes, seguiam na corrente arrastando consigo tudo. Um par de porcos, dois burros, alguns cães, galinhas, patos e coelhos não se conseguiram também segurar e seguiam na castanha e barrenta fúria da água que agora já era um autêntico ribeiro e ia engrossando de minuto a minuto.
Duas horas passadas continuava a chover cada vez com mais intensidade. Dentro da igreja o calor mantinha-se insuportável e o padre refugiara-se na sacristia onde os primeiros ratos lhe começaram a subir pelas botas acima. Adormecera e iria dormir durante os próximos quatro dias.
Durante toda a noite o céu continuou a despejar vento e chuva como nunca se tinha visto. O calor intenso continuava dentro da igreja de onde ninguém conseguia sair. Inacreditavelmente nem uma lâmpada nem um fósforo nem um bafo de luz se vislumbrava em nenhum dos presentes e mais estranhamente ainda, ninguém via nem sentia o seu vizinho por mais que apurasse a vista e o ouvido ou que com a mão tentasse encontrá-lo. Todos se tinham enterrado e refugiado dentro de si próprios. Parecia que um silêncio sepulcral tinha enterrado vivos todos os presentes na cerimónia.
De repente começaram a senti-los! Primeiro um pequeno chiar, depois um ruído imenso que saía das velhas paredes e abafava o forte aguaceiro que sem dó nem piedade tudo estava a destruir. Começaram a senti-los nas pernas, nas roupas, nas calças, na cara, na boca e nos cabelos, chiando, pegajosos e impiedosos. Tentavam sacudi-los mas a sua viscosidade e cheiro nauseabundo entrava-lhes pelas narinas e tolhia-lhes os gestos. Tentavam pisá-los mas agarravam-se aos sapatos e em breve todo o chão da igreja era uma enorme carnificina onde por cada um que conseguiam matar cinco ou seis surgiam mais fortes olhando-os no escuro. Não se via vivalma só os guinchos e o ruído das suas loucas corridas. Tentavam gritar mas não conseguiam pois as suas bocas estavam tapadas, cheias deles, os braços queriam esbracejar mas não tinham força para isso e as suas pernas pareciam anestesiadas com aquele bafo pérfido.
Na sacristia o padre continuava a dormir e as suas roupas já tinham desaparecido devoradas pelo apetite voraz de milhares de ratos. O branco nu da sua carne alvejava na negrura da noite de terror que se vivia. Indiferente dormia suando e ressonando ritmadamente.
Durante mais três dias continuou a chover como nunca ninguém imaginara que pudesse nalgum lugar da terra suceder daquela forma, até que de repente um imenso relâmpago deu luz à tarde e tudo se iluminou de novo. No adro da igreja instantaneamente milhares de flores tinham florescido como por milagre e dentro da igreja pequenos montinhos de cinza fumegavam junto dos bancos onde outrora os convidados teriam estado. Perto do altar um resto de tecido branco, com uma cruz bordada em fundo, indicava que uma noiva teria passado por ali outrora e num banco um pequeno livro de missa, de capa negra e com um pequeno crucifixo desenhado, sobrara da fúria que se abatera sobre tudo.
Foi nessa altura que o padre acordou do seu estranho sono. Viu-se nu e achou estranho tal facto mas não demasiado pois o calor era tal que pensou ter-se despido sem saber. Num canto viu um fio de água e um pequeno rato fugindo por um buraco na madeira. Pareceu-lhe anormal tal facto. Ratos eram coisa que não costumava haver na sua igreja. No adro da igreja milhares de flores brancas despertaram-lhe a curiosidade e na igreja um ligeiro odor a cinza e um negro gato esquelético de olhos endemoninhados em cima do altar fizeram-no parar e pensar… Afinal sempre tinha ratos na igreja, o gato provava-o. De repente lembrou-se que tinha um casamento para fazer mas nem noivos nem convidados lhe apareciam. Voltou-se para o altar e o gato lá continuava. A olhá-lo de pelo eriçado, mas com uns olhos humanos e os uns dentes ferozes, duas perfeitas fileiras completas. Um gato com um rosto humano só que continuava a ser um gato dentro do qual o noivo se escondera dos ratos.
Nu, pegou no crucifixo onde um Cristo de madeira parecia sangrar e apontou-o para o gato, suando em bica, exactamente no momento em que o sino tocava as doze badaladas. Só nesse momento o gato se começou a transformar. Ao correr pela igreja, perseguido pelo nu do padre e pelo crucifixo, ia aumentando de tamanho e derrubando tudo à sua saída. Quando chegou à porta o seu tamanho era o de um cão e na rua tomou uma estranha forma meio humana meio bicho desconhecido que conforme corria ia berrando, ladrando e pisando as flores que à sua passagem secavam e murchavam.
Desapareceu por completo e todas as flores tinham secado, murchado, desaparecido à sua passagem restando pequenos montículos de cinza fumegante onde antes elas tinham florescido sem aviso prévio.
Satisfeito o padre regressou à igreja e preparou-se para o que iria suceder a seguir. Em breve tudo iria recomeçar: O mesmo casamento, o mesmo noivo e o mesmo gato iriam fundir-se num só. A mesma chuva viria e os ratos iriam gritar e chiar ainda mais, por isso iria dormir. Resignado preparou-se para que o seu corpo, grande, branco, retomar novamente a forma inicial. Sem dar por isso foi-se escondendo dentro de si próprio e em breve era menino outra vez. Dormiu… Quando eles chegassem iriam acorda-lo e tudo se repetiria…
Diabo de vida!
Vitor Barros

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Obrigado, Obrigado...





A todos os que adquiriram o meu livro deixo o meu sincero obrigado. Espero que tenham gostado do mesmo.
Já tive oportunidade de receber alguns comentários sobre o mesmo. Todos gostaram do que leram e todos me deram uma opinião muito sentida sobre a maioria dos textos. Todos mesmo, todos sem excepção.
Ontem recebi pessoalmente o texto que abaixo transcrevo. Cheio de emoção e de afecto.
Fiquei feliz, ficámos felizes. Ficámos comovidos.
O que escreveste são pétalas que o teu coração perfumou.
Obrigado Epifania!


Pequena análise do teu livro”

“Vitor, foi com alegria misturada com tristeza, saudade e umas lágrimas a quererem sempre saltar dos olhos que iniciei a leitura do teu livro.
Já o título me comove. As palavras do Presidente, o prefácio da Isabel Maria também.
Quero absorver todas as palavras e ir até onde a sua magnífica imaginação e seu coração bondoso e humilde me levarem.
Como mãe da Dina não posso deixar de agradecer-lhe o nome dela neste livro, apesar de nunca a ter conhecido (julgo que não?) Olho à capa e numa rosa vejo logo o rosto dela.
Como é sentimental! E como me identifico em algumas coisas com o Vitor. Também tenho correntes presas ao passado. Adorei as frases “ Tenho a chave que abre mas nunca entro. Lá de dentro um cheiro intenso a flores, segue-me, persegue-me, chama-me e protege-me! Ao lado num pequeno poial em pedra costumo deixar as flores…para as flores! Para eles.”
Conheci tudo o que se refere na infância e adolescência sobre os trabalhos campestres e afazeres domésticos. Também fui sócia da Biblioteca Itinerante embora lesse menos número de obras. Como sempre adorei escrever, desde que me conheço que tenho alguma coisa escrita (mal escrita!) Recordo-me que já redigi algo sobre essa Biblioteca cinzenta que balançava quando estavam duas ou três pessoas no seu interior. E conheci bem os dois senhores, homens finos, cultos, um recordo que se chamava Camacho.
A escola Afonso III apenas a conheci na época de exames. Fui do tempo em que os alunos do Ciclo Preparatório (Antigo 2º ano) do Externato de S.Brás de Alportel faziam as provas finais lá. Até a Escola Técnica de Tavira o fazia.
O Liceu João de Deus também me teve como aluna, infelizmente só por um ano. A distância e a falta de meios de transporte fizeram-me desanimar e desistir. Atitude que deixou meu pai triste. Ele desejava ver a filha com mais estudos, bem empregada…como hoje o compreendo! E quanto se orgulharia na Dorinha que teve mais juízo do que a mãe!
Continuando, esse contacto com a natureza, com os cheiros, as cores, os sons, também os aprecio, sinto, recordo-os e trago-os sempre no sentido. Ó Vitor apetece-me dizer com toda a minha pequenez e humildade: Deus deu-nos uns olhos que alcançam mais longe. Que vêem, o que está escondido dentro das coisas e das pessoas. O que mais me encanta na sua escrita é a sua descrição e mesmo paixão por um passado que tal como eu, não conseguiu suster, agarrar. Há em si um saudosismo enorme! A história da sua família, dos seus antecedentes foi muito interessante. Também eu adoro ir para trás no tempo. Fi-lo pesquisando horas e horas, dias e dias durante meses quando tive todos os livros paroquiais existentes de 1865 a 1948. Passei para cadernos, os nascimentos, casamentos e óbitos embora abreviasse muita coisa.
Essa do Jornal do dia do nascimento da Cinara foi um interessante pensamento. E mais uma vez as lágrimas teimaram em sair mas evito molhar o livro que afinal é mais da Dorinha do que meu e ela ainda não o leu. Até porque a visão vai sendo fraca, apesar de pôr óculos, tenho-o um pouco distante. Molhar o seu livro com as minhas lágrimas não quero! Possivelmente por ser a primeira vez que leio uma obra em que conheço tão bem o autor, parte da história, e das personagens, fazem-me ficar mais atenta e comovida. Conheço a Fernanda desde menina de escola primária. Vi-a crescer, fazer-se mulher. À Cinara ainda melhor. Sempre a conheci. Ainda me lembro um Domingo de mercado, quando eles eram dentro da aldeia, a Fernanda tinha uma barriguinha de uns cinco seis meses e escolhia numa tenda, junto à casa de Nossa Sr.ª das Dores( onde põem a mesa das festas) uma bandelete de bebé com um lacinho. A rapariga dessa barraca (Ilda) já faleceu, eram de S.Brás e agora é o marido que vende. Costumavam ter bonitos acessórios para recém-nascidos. Eu tinha a Dorinha comigo, ela teria uns nove anos mas reparou e disse-me.
-Deve ser uma menina senão a mãe não comprava um lacinho para o cabelo.
Achei imensa piada por ela estar a reparar.
Depois chegou a pequena Cinara e a minha menina já louca por crianças pedia-me quase todos os dias para a ir ver, e brincar com a pequenina. Fê-lo durante muito tempo. Contava-me como ela se desenvolvia, como já queria escrever, como era inteligente e já conhecia as letras para aí aos 2 ou 3 anos. De longe mas perto, vi-a crescer por isso emociono-me e o raio das lágrimas vêm por tudo e por nada.
“Foi Deus” para mim, se desse pontuação esse texto teria a nota máxima.
“ No Natal eu vou chorar” também fez-me chorar. Infelizmente sei o que é perder um pai e o meu foi tão cedo. Tinha 21 e ele 46 anos quando sucedeu.
A minha alma entende a “tua” (sua seria melhor, tenho dificuldade, não sei se tratar o Vitor, por tu, se por você, como é mais novo teria sentido levá-lo por tu mas o convívio é pouco e dá-se este dilema) porque sente da mesma maneira. Fazemos parte de um mundo de pessoas diferentes que vêem tudo com o coração. E foi o texto “Sem pressa” que me fez pensar assim.
É lindo o poema à Fernanda! Que o vosso amor se mantenha sempre assim, tão vivo é o que desejo. Ela teve muita sorte por Deus ter-lhe oferecido um marido “tão especial”.
Achei muita piada no seu “Elas”. Não é assim tão tosco, nem seria necessário rebaixar-se tanto para enaltecer as mulheres. Ri um pouco! Também tem sentido de humor quando quer. E obrigada na parte que me toca pelo facto de ser mulher.
Quanta ternura Vitor! E que saudade nesses pequenos passarinhos com olhos feitos de sementes de alfarroba!!!
Estou a adorar o seu livro porque faz-me vibrar, sorrir, chorar. Tudo ao mesmo tempo! Tem sentimentos! Essa cruz na porta do forno, essas rezas tenho-as na ideia e no papel feito à minha maneira de sentir. Os meus mortos também me ajudam e do céu enviam-me o carinho que às vezes aqui me falta.
São Poemas! Não quase.
O provérbio filho de peixe sabe nadar adequa-se à Cinara. Puxou a linha do papá como a avó Salomé diz! E parabéns a ela. Quem aos treze anos escreve assim como escreverá aos 18,20,30,40…anos? Temos aqui uma poetiza! Quem sabe se daqui a anos não será famosa e o seu nome se destacará? Desejo tudo de bom para ela. Muito sucesso na escola e pela vida fora, mas principalmente que saiba sempre diferenciar o que está certo do que está errado e que se reja pelos princípios do bem. Achei admiração como o poder do amarelo tem tanta influência no Vitor. A tal bola amarela…
Conheci esses meninos quase todos dos “Meninos com Dedinhos de Pauzinhos de Giz”. Se não estou enganada e decorreram já tantos anos, a Ana Lúcia era irmã da Sara. Tinham grandes olhos negros e um ou outro sinal escuro no rosto (sardas) Nas férias trocava correspondência com elas. Telefonava-lhes. Contactava-mos todos os dias em tempos de escola. Elas almoçavam no refeitório com os meninos de longe: S.Romão, Corotelo, Vilarinhos.Os alunos de Santa Catarina também comiam lá do que trazíamos de casa. A professora Zézinha orientava os mais pequeninos. Aquecia-lhes a comida num pequeno fogão a álcool. Convivíamos todas, tornávamo-nos amigas. A Luísa, a Teodora, a Eleutéria. Todos esses nomes fizeram-me regressar a esses tempos. Da Marinel estava esquecida mas o nome foi suficiente para o cérebro enviar-me o rosto dela, com o cabelo claro aos caracóis e feições muito perfeitinhas. A Salomé (se for a mesma) parece-me que era Salomé Rosa; passou férias na minha casa uma semana quando eu tinha 16 e ela uns treze anos. Foi num verão por ocasião das Festas do Largo. Os pais vieram cá à festa e um irmão, o Fernando. Dela conheci a família quase toda. Uma prima mulher de um pirotécnico que mais tarde veio a falecer vítima dos foguetes. O irmão desta, o Rogério Contreiras (não sei se é da família do Vitor!) O mundo é pequeno! Todos somos conhecidos afinal.
Eu pessoalmente gosto mais de escrever sobre factos verídicos do que sobre ficção. Acho que não tenho grande imaginação. É engraçado como o cheiro pode trazer-nos lembranças! E pronto. Parabéns ao Vitor por ser tão sensível, presentear-nos com este livro que nos deu muito prazer a ler. Que bom seria que toda a gente fosse parecida consigo. A sua escrita tem energia, movimento, acção. Não é por acaso que escreve fluentemente e transmite tão bem os seus estados de alma.
Ambos temos as asas do nosso anjo a proteger-nos. O Pedro e a Dina. Eles lá gozarão uma Felicidade nunca inferior à que lhes seria dado gozarem aqui. Assim penso! No final todos estaremos unidos. Eles avançaram mais depressa. Todos lá chegaremos embora com menor qualidade e talvez com mais sofrimento.
Fico feliz por se reger pelos princípios que eu procuro seguir: Amor à família (viva ou morta), carinho pelas lembranças infantis, juvenis…contudo temos todos pés de barro, pecamos e somos imperfeitos.
Os livros ensinam-nos muitas coisas. O seu não é excepção. Continue a escrever porque tem muito valor. E claro que os “Meninos Nunca Morrem”. Há quase dezanove anos que grito essa mensagem para todos, por essas ou por outras palavras. Uns concordam comigo, outros coitados sinto pena deles.
Esqueci-me de falar no poema “Solidão” onde me identifico muito com o Vitor. Tantas vezes escrevi parecido; eu nada sou…eu nada faço…! Aquelas frases que chegam naqueles momentos em que estamos mais deprimidos, mais tristes.
Agora sim vou terminar. Peço desculpa porque eu “falo muito escrevendo, mais do que falando”.



Obrigado, Obrigado Epifânia
vitor barros

domingo, 13 de julho de 2008

CHEGOU O MEU LIVRO


Chamo-me Vitor e ninguém me conhece…
Nasci em Setembro de 1962, no Sítio da Fonte da Murta em S.Brás de Alportel.
Moro em Santa Catarina da Fonte do Bispo. Também ninguém conhece a Fonte da Murta e poucos conhecerão Santa Catarina…
Nunca sonhei publicar um livro. Nunca pensei em publicar um livro.
Tudo começou quando resolvi criar um Blog. Comecei a escrever pequenos textos e a gostar dos mesmos. Comecei a ter alguns leitores e alguns comentários. Ao fim de algum tempo tinha muitos leitores e muitos comentários.
Começaram a convencer-me que deveria publicar os meus textos. Quase que me obrigaram, picaram-me, empurraram-me…
Por isso este livro é um pouco de todos vocês. De todos estes meus amigos virtuais sem excepção. De todos aqueles a quem eu, quando encerrei o Blog prometi que voltaria. De todos aqueles a quem eu prometi que se estivessem atentos iriam reconhecer-me porque aquele cheiro a flores, aquele cheiro a povo estaria comigo.
Para toda a comunidade virtual, simbolizada na pessoa da minha conterrânea e “mana” adoptiva Isabel Maria , que tanto me incentivou, comentou e falou no livro, fica o meu especial obrigado e a responsabilidade de ser ela a porta-voz do meu agradecimento. O prefácio também é de sua autoria.
Aos especialistas em vírgulas, pontos finais, pontuação e demais aspectos técnicos, deixo o meu pedido de desculpa pelas incorrecções e erros cometidos e garanto-vos que tudo, tudo quanto está aqui, desde a capa até ao último ponto final, foi feito por mim, sozinho e sem qualquer ajuda.
Espero que gostem. Se não gostarem paciência. …humildemente vos confesso: é que, e muito francamente, também não sei fazer melhor….

Embora sem a vossa autorização, tomei a ousadia de incluir no livro alguns dos comentários que tiveram a amabilidade de tecer ao texto que deu origem ao título que dei a este livro:


Maria disse... http://ocheirodailha.blogspot.com/
Tive que parar a meio da leitura para secar as lágrimas. Porque já não vias as letras. Porque este Pedro pode ter outro nome para mim. Mas não, é o teu Pedro. O que jogava à bola contigo. Não o que brincava comigo.Tenho um enorme nó na garganta que não me deixa escrever o que quero. Porque não devo. Apenas te digo, que, se os meninos nunca morrem, a verdade é que a gente deixa de os ver....Um beijo enorme para ti.

Sophiamar disse... http://sophiamar.blogspot.com/
Dá-me a mão. Senta-te aqui ao pé de mim. Vamos chorar os dois. O Pedro teria 23 anos se cá estivesse. Deixou a bola cheia de sonhos, a bicicleta cheia de saudade dos cavalinhos, das piruetas, das travagens, o cão e o gato, ficaram sem um dos donos, o mais irrequieto, o mais brincalhão, e nós por cá continuamos sem as suas gargalhadas, as suas marotices....mas sempre com ele porque tudo nos fala de si. O avô partiu e devem estar juntos...e por cá a saudade lavra o corpo, lavra a alma, deixa sulcos no coração. Voltarei mano amigo, a ler, a reler, a olhar o Pedro, um dos filhos da tua mana, sobrinho de um amigo que jamais esquecerei.Voltarei. Preciso de dizer-te, repetir quanto gostei de ti, das tuas palavras, dos teus posts, do afecto imperdível que aqui sempre deixaste.Beijinhos...a chorar contigo. De mão dada.

amigona avó e a neta princesa disse... http://amigonasempreblogger.blogspot.com/
Só consigo chorar...não vou embora envergonhada vou porque agora tenho que ir!

Carminda Pinho disse... http://forum-cidadania.blogspot.com/
Não consigo dizer nada! Mas deixo-te um grande abraço, do tamanho da ternura que imanas deste post.Até qualquer dia!Beijos

augustoM disse... http://klepsidra.blogspot.com/
Por onde quer que vás, que sejas feliz.Um abraço. Augusto

bettips disse... http://bettips.blogspot.com/
Abraço para o que não é possível compreender: só abraçar.


lena disse... http://uma_cabana.blogspot.com/
Meu amigo:li, reli, parei, voltei ao princípio de tudo para e via sempre o Pedrodifícil dizer-te algo, difícil não sentir, difícil não chorar...permite que vá buscar a buscar a tua última frase e a coloque aqui: "Os putos nunca caem, os MENINOS NUNCA MORREM!"e como ler-te é um privilégio fui buscar para aqui uma promessa tua:"Obrigado...Eu voltarei!"virei de novo para te reler, para dizer que estou contigo.Fica o meu abraço, um abraço cheio de força, de amizadebeijo meue até jálena

Laura disse... http://resteadesol.blogspot.com/
O Pedro continua a viver, ele vem perto de ti, ele senta-se junto de ti e leu o que escreveste para ele, ele ama-te como sempre e espera pacientemente que chegue o vosso dia de ir, e então!...lá também se joga a bola e se brinca...És um querido e amado tio e que sorte que ele te teve.Teve de ser assim, infelizmente, nós não entendemos o porquê das cosias, mas tudo tem uma razão de ser.beijinho para ti e volta depressa até nós.laura..

margusta disse... http://momentossentidos2.blogspot.com/
Amigo...o teu blog ficou mais vivo do que nunca!...E a memória de Pedro permanece agora em muitos mais corações.Este teu texto está dolorosamente bem escrito...de comover até ás lágrimas...Um abraço enorme para ti!...Espero encontrar-te por aí, noutro cantinho qualquer...

Pascoalita disse... http://pascoalita.blogspot.com/
Geralmente "O que é bom dura pouco"Isto para reafirmar o que digo desde o início ... os textos deste Blog são do melhor que tenho lido por aqui. Como muitas outras coisas na vida, nunca entenderei porque devemos ficar privados da sua leitura, mas lá terá as suas razões.Sobre o post e seu conteúdo, devido ao pré-aviso, foi-me relativamente fácil controlar a emoção.·Não vou explicar em que me baseio mas a minha convicção leva-me a reformular a frase final:Os bons escritores nunca pararão de escrever!Prometo ficar atenta, ou melhor mais atenta.Feliz Natal1 beijo

Dulce disse... http://paralemdemim.blogspot.com/
Demasiado tempo sem passa por aqui... E agora que vinha matar saudades, encontro uma despedida! E pior ainda! Os textos retirados. Eu sei que os blogs duram o tempo que tiverem que durar... depois há que partir e talvez recomeçar de novo... de outra forma. Se os publicares - os textos - dá-me alguma indicação para o meu e-mail. Gostaria de ter o teu livro. Tens uma forma muito especial de escrever. Toca-nos cá dentro... (E para além disso és da terra onde a minha mãe nasceu!!!))Um beijo enorme e espero voltar a encontrar-te por aqui.


António disse... http://eusoulouco2.blogs.sapo.pt/
Meu caro amigo!No teu último texto deste blog atingiste o clímax da arte de bem escrever.Uma peça notável que não pode deixar de tocar quem a lê.Espero que um dia voltes e que eu ainda por aqui ande para te poder ler.Um grande abraço

Odele Souza disse... http://flaviavivendoemcoma.blogspot.com/
Lindo e comovente este teu texto sobre Pedro. Lamento muito que estejas de partida. Leva contigo o meu carinho.

Bichodeconta disse... http://alvesbesuga.blogspot.com/
Vou sentar-me ao teu lado, segurar a tua mão e chorar contigo, pelo teu Pedro e por todos os Pedros que conhecemos, e são tantos. Gosto tanto de o ler, espero que um dia, quem sabe, voltará ao nosso convívio. Um abraço, ell



Um Momento disse... http://somomentos.blogspot.com/
Depois de parar imensas vezes de te ler... sem deixar de te sentir...Abraço-te imensamente...Desculpa nada mais conseguir dizer

Isabel Teotónio: disse...
Obrigada, pelas lágrimas derramadas...obrigada, por as teres derramado...obrigada, por tão belo feio momento!Ele, de onde está, e junto dos demais...também te agradece.Enquanto houver quem se lembre dele,Ele sempre viverá!Bem o dizes: Os meninos nunca morrem!Um abraço de nós todos p/todos vós.
Baby disse... http://mar-la-vento.blogspot.com/
Fizeste-me chorar, porque a tua história foi tão verdadeira que me fez lembrar outros Pedros que não "morreram", mas que desapareceram do nosso convívio, deixando uma saudade tão grande que nada jamais desvanecerá.Chorei também, porque não mais me deixarás enternecer com as tuas histórias tão especiais, que as guardarei para sempre no coração.Foi uma dádiva, conhecer-te.


Gata Verde disse... http://viajandoevivendo.blogspot.com/
Até sempre...


Cristina disse... http://estrelices.blogspot.com/
Há situações que nunca ninguém deveria passar por elas.Resta-me dizer-te... não "adeus" (odeio despedidas), mas ATÉ BREVE, porque, quem sabe, um dia, nos encontraremos.

Carracinha linda! disse... http://carracinhalinda.blogspot.com/
Foi muito difícil ler este post sem chorar.Como escreveste: os meninos não morrem. Nem tão pouco se esquecem. Mesmo que já tenham passado alguns anos. E o Pedro viverá para sempre na tua memória e fará sempre parte das tuas recordações. No sítio para onde o Pedro está, está também uma bicicleta na qual ele se farta de fazer habilidades e cavalinhos. E tem lá também uma bola com a qual tem marcado muitos golos.A dor de perder alguém nunca passa... mas valem as boas recordações que temos dessas pessoas...Mais uma vez, fico triste por saber do fim do blog. É que todos os textos são simplesmente fantásticos. Não se encontram muitos deste género por aqui.Quem sabe um dia não voltas? Vou ficar a pensar que sim.Se não nos "virmos" antes, desejo já um Feliz Natal com muita saúde e na companhia de todos os que te são queridos.Beijinhos

Rafeiro Perfumado disse... http://rafeiroperfumado.blogspot.com/
Caro, tive o prazer de ser dos primeiros a "conhecer-te" neste meio. Deliciei-me com a qualidade dos teus textos, qualidade essa ao alcance de muito poucos, acredita.É com pena que vejo encerrar o blog, apesar de compreender perfeitamente os motivos. Mas peço-te, nunca o apagues, pois é uma memória sentida que irá permanecer por aqui, quem sabe servindo de consolo a outros tios de outros Pedros…Um grande abraço.



Girassol disse... http://omeugirassol.blogspot.com/
Texto que dispensa qualquer palavra... importa apenas que todos os pensamentos aqui conduzem ao mesmo!!!!!!!Um beijo enorme.


her disse... http://lubiden.blogspot.com/
As nossas vidas estão cheias de Pedro e de pessoas por chorar…
Respeito-te tanto.E as lágrimas são necessárias para levar o que o tempo insiste em não levar.Um beijo enorme


Sisi disse... http://sisi-omundodossentimentos.blogspot.com/
Olá passei para te deixar um doce beijinho e votos de um bom e feliz natal com muita alegria, saúde e muito amor...tudo de bom para ti
Teresa David disse... http://teresadavid.blogspot.com/
Não desista de escrever. As suas histórias já escritas e as que irão florescer decerto, pois dá para ver que a escrita faz parte de si, não poderão parar. Continue, pelo meu lado estarei atenta a seguir o que tiver para nos contar.Um ano Novo feliz, se possível, e cheio de histórias de alegria de viver, pois nem tudo são tristezas nesta vida. E eu sei o que digo!Beijos
GTL disse... http://gabinetedetemposlivres.blogspot.com/
Tenho pena que tenha acabado. Passei para desejar que tenham passado um Feliz Natal e desejar um excelente 2008 TG

Blueshell disse... http://blueshell.blogspot.com/
E o Pedro não morreu! Ele permanece vivo dentro dos que o amam. Permanece através das memórias, e das lágrimas de saudade.Ele viverá para sempre...Um enorme abraço...bem forte.BlueShell

Pascoalita disse... http://pascoalita.blogspot.com/
Deixo-te os meus votos de um Ano Novo muito próspero! Que se concretizem todos os projectos e sonhos e que sejas Feliz, sempre!Um beijo

poca disse... http://offmeansoff.blogspot.com/
Sempre difíceis as despedidas.Sempre a vida a tentar adiar a morte. Sempre o amor a tentar resgatar pedaços de vida de alguém que já morreu.Não aprendi a dizer adeus.Por causa disso cada vez mais me custa dizer Olá.

foryou disse... http://againandagainforyou.blogspot.com/
Vinha desejar-te um bom 2008...O desejo mantém-se mas deixo mais umas palavras: aprendi na vida que ninguém morre enquanto a nossa memória não deixar!Um beijo enorme para ti. Um obrigada por todas as palavras que me deste em 2007

Sophiamar disse... http://sophiamar.blogspot.com/
Meu Querido ManoO Cusco morreu? Jamais! Este rafeiro que tens do lado direito do teu blog, vai ficar a morar no meu. Posso?Bem, o Ano Novo está à porta, o velho de saída e não poderia deixá-lo partir sem vir aqui dizer-te que te desejo tudo, tudo igualzinho ao que quero para mim. Se puderes ter a dobrar, tanto melhor. Disseste-me palavras que jamais esquecerei, escreveste posts a que ninguém podia ficar indiferente, criaste afectos com raízes daquele chão condimentado com as "especiarias" da serra que tanto nos deu.Tu estás de volta, devagarinho, muito, muito de mansinho...Não poderás deixar-nos porque jamais te esqueceremos.Deixo-te um abraço apertado em laço da amizade fraterna da mais pura que a serra tem e mil beijinhos das gotas de água ribeiro que atravessa as veredas e atalhos que calcorreei em menina.Tem um Ano muito feliz. À meia-noite pensarei em ti. Por que razão terás dito que doutores, engenheiros, professores não te teriam olhado? Tu és tão bonito, Cusco! E tão bom! Um profissional esmerado.Isabel, tua amiga e mana de adopção. É o coração!

Um Momento disse... http://somomentos.blogspot.com/
Aqui passei para te desejar um Bom Ano novoBeijo Imenso e agradecido por tudo... a TI!

bettips disse... http://bettips.blogspot.com/
Porque há gente que nem sabemos como ou onde existe. Mas se recorda.Passo a deixar desejos de voltar.Beijos



A todos o meu Obrigado
Vitor Barros

sexta-feira, 13 de junho de 2008

XI- A Cidade e o Futebol

Cidade sem sol
Triste, fria!
Cidade sem sol
Sem luz do dia
Cidade sem sol
Negra, escura, impura
Triste vagabunda
Sem ser fecunda
Cidade com sol
Alegre, viva
Cidade com sol
Grande e altiva
Cidade com sol
Grande, bela, pura
Cidade verdura
Cidade com sol
Cidade em dia de futebol!




Vitor Barros

domingo, 18 de maio de 2008

X- Não me contive e chorei...

Fiquei confuso! Estavas no parque e arrumar carros. Arranjas-te um lugar para o meu e ajudaste-me na manobra.
Fiquei confuso porque ao sair do carro com a moeda na mão não te vi e não a vieste buscar. Desapareceras!
Fiquei confuso e fui espreitar. Vi-te no outro extremo do parque longe do local onde eu ficara, afastado de propósito. E então eu percebi…
Afinal eu não te tinha visto…
Muitos anos atrás, éramos putos, reguilas, estudantes do ciclo. Três anos na mesma turma, mais dois de liceu. Juntos jogámos quilómetros de futebol, fumamos às escondidas o primeiro de milhares de cigarros e bebemos comprometidos as primeiras de muitas cervejas, piscámos o olho às primeiras raparigas.
Faltámos a dezenas de aulas, fomos para a praia, a pé e à boleia! Perdemo-nos nas salinas, nos terrenos do aeroporto, nos pinheiros.
Jogávamos às cartas por dinheiro, tocávamos às campainhas e escondíamo-nos. Éramos putos do ciclo, reguilas alegres e livres.
Já no liceu, um pouco menos putos, continuámos putos reguilas e sonhadores. Lembro-me que sonhavas com uma mota e de que falavas que gostarias de um dia ter um bar.
Passaram-se muitos anos. Nunca mais te vi. Não sei se algum dia tiveste uma mota e um bar.
Voltei ao mesmo parque uns dias depois. Não te vi, não estavas lá! Perguntei a um teu colega o que te tinha sucedido:
-Partiu…para sempre!
Percebi. Percebi e então tive vergonha. Vergonha da vergonha que tiveste, tive vergonha de não ter ido fumar um cigarro e beber uma cerveja contigo, tive vergonha de não ter ficado a saber se algum dia tiveste uma mota e um bar.
E naquele parque onde afinal não te vi, encostei-me ao carro e sem vergonha não me contive e chorei!
Descansa em paz.


Nota: Texto real... Arrumava carros em Faro, perto de um café de nome: O SEU CAFÉ. A minha “mana Isabel” deve-se ter cruzado com ele também!


Até breve
SE DEUS QUISER

segunda-feira, 12 de maio de 2008

PARABÉNS DORA





A Dora cresceu depressa… Muito depressa. Tão depressa que sábado vai ter a sua festa de fim de Curso.
Sem ter palavras com que a possa elogia ou incentivar e desejando-lhe as maiores felicidades limito-me a dizer-lhe:



Vai Dora, segue em frente. Avança em direcção ao futuro.
Constrói um ninho de esperança, um caminho de amor.
Vive, aproveita a beleza do nascer do sol, o cantar dos passarinhos. Veste a tua alma com a branca flor das amendoeiras e o teu sorriso com o seu perfume.
Reparte o teu amor pelos outros. Recebe o amor dos outros. Partilha-o, difunde-o transmite-o.
Vai Dora, segue em frente, sem medo. Avança em direcção ao futuro.
Sê feliz, boa profissional, boa esposa, boa mãe. Ajuda a crescer os nossos futuros médicos, advogados, pedreiros ou padeiros. Ajuda-os a pintar a tela da sua vida impregnando-a com o teu perfume.
Vai Dora, vai em frente! Avança em direcção ao futuro e de certeza que nunca a branca flor das amendoeiras deixará de perfumar o quintal da tua vida.

PARABÉNS DORA





Vítor Barros

domingo, 13 de abril de 2008

IX- O APITO DOS COMBOIOS E A ERMELINDA

No dia em que se ia reformar acordou cedo. Sentia a cabeça vazia esvaziada de vida, amorfa e inútil como uma peça decorativa que alguém lhe colara ao tronco. O estômago rugia-lhe como uma fera ferida e ardia-lhe como um fogo. Maldita azia que o acompanhava desde há longos anos, mastigando-lhe as vísceras, comendo-o aos poucos, rasgando-o por dentro. Levantou-se, vestiu-se e preparou-se para fazer o caminho que durante mais de quarenta anos sempre fizera. Iria passar pelos mesmos locais à mesma hora…Quando saísse ouviria o primeiro comboio a apitar, negro, enorme e enrolado numa nuvem de fumo.Gostava de os ouvir apitar, o som alegrava-o, acordava-o fazia-o por vezes sentir-se vivo. Mais à frente na casa amarela, de um amarelo já pálido e mortiço, na esquina da curva estaria a Ermelinda ainda bonita e sempre com aquele ar triste, pendurando na corda as camisas, as calças, as meias cheirando a lavado e pingando tristemente para o chão como que suspirando por um sol ainda sem força. Era a vida.. dizia anos e anos a fio a Ermelinda, sorrindo para o sabão.
(Detestava ouvir os comboios apitar, dissera-lhe um dia: Pareciam-lhe almas penadas gemendo na noite escura.) Detestava também a azia e aquele amarelo morto que a casa lhe pusera na alma…
Mais à frente a velha árvore onde se costumava sentar um pouco continuaria lá imponente, a ver passar vidas por ela sem se reformar sem pingar tristemente para o chão sem azia nas suas raízes carnudas, ouvindo os comboios apitar. Também gostava daquela árvore.Vira-o envelhecer, parecia que por vezes lhe sorria e zombava dele. Adiante um pouco, dobrada a última curva da estrada lá estava o monstro que lhe comera a vida, que lhe pusera a cabeça vazia e azedara o estômago, lá estavam as suas veias de aço carnudo suportando o peso dos apitos gemendo na noite. No seu pequeno gabinete meia dúzia de recordações para trazer, uns colegas para despachar e um pequeno chefe de nariz vermelho e óculos tristes pendurados já nem se lembrariam que ele alguma vez existira E o raio da azia sempre a apoquenta-lo. Fria, cortante mais negra que o apitar dos comboios.
Em frente ao espelho preparou-se para desfazer a barba. O vapor da água quente concentrada no espelho não o deixava ver bem. Passou a lâmina pelos brancos pelos e a imagem distorcida devolveu-lhe uma cara diferente da sua.Estava velho, amarelo (aquele amarelo da morte) minado pela vida, cansado. Acabou de arrancar os últimos fios e lavou a cara. Sentiu-se melhor, o outro que estava no espelho já estava mais parecido com ele. Sorriu-lhe e despediu-se dele. Nunca mais se veriam, pensou!
Saiu e começou a caminhar, seria a última vez que fazia aquela viagem. Quando olhou para trás, o outro, o do espelho estava atrás dele, segredou-lhe qualquer coisa e riu, riu muito e empurrou-o suavemente.
Quando chegou à casa amarela já estava decidido e não hesitou. Saltou para uma das camisas ficando ali pingando tristemente. Quando a Ermelinda chegou cheirando a sabão lavado e o levou junto ao resto da roupa já não tinha azia. Apertou-se de encontro a ela segredou-lhe docemente ao ouvido que nunca mais os comboios lhe pareceriam almas penadas gemendo…
Quando o outro, o do espelho, passou por eles apitou suavemente e continuou a rir..


Vitor Barros

domingo, 16 de março de 2008

VIII- A PROCISSÃO

O padre Domingos dormira mal durante a noite e acordara com a sensação que aquele dia de procissão que se aproximava não lhe iria correr muito bem. Durante toda a noite mal pregara olho. Maus sonhos, um desconforto enorme e uma sensação de angústia não o deixaram descansar o suficiente. Sonhara com pássaros, com penas, com flores murchas, com chá sabendo a limões podres... Durante toda a noite, nas redondezas, os cães tinham ladrado desesperadamente e de manhã quando abrira o postigo e espreitara o alvorecer do dia, a primeira coisa que avistara tinha sido um pintainho amarelo, morto pingando ainda sangue e sujando-lhe a soleira da porta.
Tomara um pequeno-almoço simples, muito leve e mesmo assim sentia o estômago como que a ferver. O fígado e o pâncreas davam-lhe pancadas agudas trazendo-lhe maus sabores à boca.
Deu a primeira volta pela igreja examinando aqueles pormenores de rotina. O altar, as flores…Viu se tinha ainda velas em quantidade suficiente. Espreitou o andor, ainda por acabar de enfeitar. Foi verificar se as vestes que iria vestir estavam devidamente limpas e passadas a ferro.
O primeiro foguete soou ainda muito cedo tentando acordar a aldeia para a festa que se aproximava. Durante toda a noite se tinha trabalhado afincadamente para de manhã estar tudo embelezado e florido para receber os milhares de visitantes que viriam assistir à grandiosa procissão. Milhares de flores verdejavam em canteiros desenhados geometricamente na estrada que conduzia à igreja, onde tudo iria ficar engalanado e brilhando de fulgor, esperando a hora de sair a procissão.
Pelas janelas espreitavam vistosas colchas e as senhoras traziam os seus melhores vestidos dando o braço a lustrosos maridos que arfavam dentro de apertados fatos.
Outros, sorridentes, de olhar másculo e aperaltados para o efeito, cavalgavam garbosas tochas enfeitadas com flores, ao som das quais iriam exacerbar a sua imensa fé propagando-a a plenos pulmões pelas perfumadas artérias da vila. Nas vistosas janelas a cor de algumas colchas misturava-se com o colorido das flores. Ufanas e vaidosas donas de casa arvorando um ar de superioridade espreitavam o crescente movimento na urbe.
Vendedores de balões, farturas, bolos e doces faziam bom negócio, enquanto em tudo quanto era cafés e pastelarias os donos esfregavam as mãos de contentamento perante o alegre tilintar das caixas registadoras. Crianças, rebocadas pelos pais, passavam assarapantadas sacudindo do fato novo o resto do açúcar que o último bolo tinha lá deixado.
No ar o crescente cheiro a devoção e misticismo misturava-se com o perfumado cheiro de rosmaninho e demais flores campestres. O sol, bola de fogo ardendo no firmamento sorria enquanto que uma ligeira brisa destapava alguns dos penteados mais trabalhados.
Tudo sorria e parecia cantar esperando os primeiros acordes da centenária banda musical que em breve chegaria.
Na igreja o Padre Domingos não dava para tudo. Afogueado andava de um lado para o outro num torvelinho. Era preciso compor um pouco mais o andor, endireitar aquele ramo de rosas, agrupar as crianças por sítios e por idades. Suava abundantemente e ansiava pela saída da procissão. E os azedos do maldito fígado a virem-lhe à boca…
Ansioso e nervoso, começava a estranhar a demora da música… Costumavam chegar sempre cedo para ensaiar um pouco, afinar as cordas vocais, e desta vez ainda nem sinais!
A sensação de desconforto agudizava-se… parecia-lhe estar com visões, como que flutuando no seu próprio mal-estar, meio ébrio… Começou a ficar amarelo e a ver tudo amarelo à sua volta. Não estranhou, nem reparou neles quando grandes e negros, ladrando e babando-se entraram na igreja. Nas suas bocas negras, cheias de penas, pequenos pintainhos amarelos debatiam-se ainda. Saíram rosnando, medonhos, pela porta lateral deixando no chão da igreja um rasto de penas e pintainhos sangrando. E foi daí que eles começaram a sair. Pequeninos primeiro, crescendo à medida que avançavam, festivamente vestidos de amarelo perfilaram-se em frente à igreja começando a ensaiar os primeiros acordes.
Vieram pedir-lhe se podia começar a procissão, pois a banda já estava a postos e o povo impaciente e cheio de calor…
Quando à noite se foi deitar sentindo o estômago a ladrar de amarelo e foi espreitar o andor verificou que no lugar das flores estavam penas e dezenas de pintainhos mortos…Dormiu durante oito dias seguidos!
Quando acordou e espreitou pelo postigo, o sangue do pintainho tinha secado na soleira da porta transformando-se num pequeno raio de sol amarelo.
A banda musical pingando sangue dos seus instrumentos e sujando-lhe todo o adro da igreja, continuava a tocar……Um povo desgrenhado, urrando e ululando gritava: Aleluia, Aleluia…
Benzeu-se três vezes e foi preparar um chá.
Com limões, forte e amarelo!

Vitor Barros

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

VII- O CHEIRO A LIMÕES

Desde pequeno que tinha medo da chuva e a pressentia assim que o cheiro forte e intenso a limões verdes saía do limoeiro e se espalhava pelo quintal e tudo quanto era arredores. Desde pequeno, que assim que no horizonte surgia um escuro escorregando do céu, que se refugiava em casa, trancando portas e janelas. Costumava ficar escondido num recanto espreitando o cheiro dos limões e avistando a água a bater na vidraça e correndo pela telha espetada no chão encharcando o imenso limoeiro do quintal e tremendo angustiado por um terror enorme.
Lembrava-se perfeitamente do vento, aquele vento que lhe trazia o cheiro e das primeiras gotas, mal o horizonte as desenhava ainda longe e do terror que lhe inspiravam. Pequenas, brilhantes, trazendo sempre junto aquele cheiro a limões verdes, secando-lhe as brincadeiras obrigando-o a procurar refúgio junto da mãe e a abandonar tudo quanto fosse terreno aberto. Sujeitando-se à quietude de uma oliveira ou de qualquer outra árvore amiga. Assim crescera sempre com medo da chuva um medo irracional que lhe aterrorizava os dias mais escuros. Nunca estava descansado quando por qualquer motivo tinha de sair de casa num desses dias, todas as viagens, todos os passeios toda a sua vida girava em volta da chuva. Já pensara em mudar de terra, mudar de país, mudar de continente mas da única vez em que viajara para longe uma chuva triste e miúda prendera-o durante sete dias num quarto de hotel impregnado de cheiro a limões. Desde pequeno que tinha medo da chuva e desde pequeno que assim que acabava de chover saía saltando e pulando para o quintal onde a oliveira e o limoeiro cheiravam a terra fresca e era debaixo delas que se despia e rebolava na terra, na erva húmida ficando completamente irreconhecível de sujidade e cheirando a ervas e a terra molhada e impregnado com aquele cheiro a limões. Era sempre a mãe que acabava por vir buscá-lo, levantando-o da terra, enxugando-o, lavando-o tirando-lhe da pele o cheiro dos limões, aquecendo-o, fazendo-o voltar à vida.
Agora tudo era diferente, tudo tinha mudado. Tinha descoberto o porquê do seu medo, o porquê do vento trazer com ele aquele cheiro, o porquê de só ele o aspirar, o ver.
Sessenta anos depois estava ansioso. Queria ir juntar-se a eles, arredondar-se, libertar-se definitivamente. O cheiro, ténue ainda avisara-o, mandara-o preparar-se, ela estava chegando, desejava-a, ansiava-a!
Aguardava. O cheiro a limões era cada vez mais intenso, irrespirável quase. Despira-se já completamente e nu de braços abertos em direcção ao céu esperava-a ansioso. Esperou durante oito horas nessa posição e quando finalmente ela chegou, grossa, forte negra e intensa, deixou-se escorregar gota a gota pela telha do limoeiro….Quando a mãe chegou para o enxugar, limpar e secar já tinha subido pelas raízes e lá do alto espalhava o cheiro pelas redondezas.
Nunca mais teve medo da chuva!


Vitor Barros

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

DOZE QUADRAS

Tendo recebido da minha amiga, conterrânea e mana adoptiva, Isabel Maria o convite para escrever um texto baseado em doze palavras, resolvi não lhe fazer a vontade.
Resolvi procurar na minha memória quadras de um homem que ela sabe que calcorreou caminhos que também nós já pisámos. Que o nosso anterior sangue ouviu e viu.
Que nasceu do povo e cresceu no povo.
Escolhi algumas palavras dela, escolhi algumas quadras dele.
Para a Isabel, doze quadras do ANTÓNIO ALEIXO:


O Homem vive sonhando
Sonhando a vida percorre
E desse SONHO dourado
Só acorda quando morre

Vem da SERRA um infeliz
Vender sêmea por farinha
Passados dias já diz
Esta rua é toda minha

Meu AMOR vê se te ajeitas
A usar meias modernas
Dessas meias que são feitas
Da pele das próprias pernas

Tornaste-te meu AMIGO
Por teres medo de mim
Não posso contar contigo
Não quero amigos assim

Quantas sedas aí vão
Quantos brancos colarinhos
São pedacinhos de PÃO
Roubados aos pobrezinhos

Casado que arrasta a asa
À mulher deste e daquele
Merece que tenha em casa
Outro homem no lugar dele

O rato mete o focinho
Sem saber que faz asneira
Depois ou larga o toucinho
Ou fica na ratoeira

Morre o rico. Tocam sinos
Morre o pobre. Não há dobres
Que Deus é este dos finos
Que não quer saber dos pobres


Para que te não iludas
Com amigos repara nisto
Foi com um beijo que Judas
Levou à cruz Jesus Cristo

Ao chamar-te inteligente
Ficaste desconfiado
Por ser um nome diferente
Dos que estás habituado

És parvo mas és distinto
Só vês bem o que tens perto
Não compreendes que te minto
Quando te trato por esperto?

Quando todos se convençam
Que à força nada se faz
Serão felizes os que pensam
Num mundo de amor e PAZ



De forma completamente aleatória, e correndo o risco de alguma incorrecção, dado estar a escrever de memória aqui fica o meu contributo para que quem eventualmente não conheça a obra de António Aleixo, fique curioso e a vá conhecer melhor.
Deixo uma última quadra para a Isabel, ela sabe porquê e vai comentá-la…

Não há nenhum milionário
Que seja feliz como eu
Tenho como secretário
Um professor de Liceu

Beijinhos e abraços para todos

Vítor Barros

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

VI- AMORES-PERFEITOS

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca



Naquele recanto matizado de paz e flores, cabelos suaves moldando o vento ela brinca! Colhe flores, vê a vida rumorejar. (Parecem-me malmequeres, margaridas, tulipas?!)
À beira do vento, suavemente em paz, damos as mãos (macias, pequenas as tuas) e olhamos.
Como está feliz….uma borboleta branca voa à sua volta.
Entardecendo silenciosos, ouvimos os nossos corações a respirar no opaco entardecer daquele fim de dia. Suavemente também, uns fios brancos navegam no calmo oceano louro do teu cabelo. Enternecidos os meus escutam o teu doce navegar.
Amo-te.
Nunca te ofereci rosas (ela brinca nas flores, margaridas?) nem flores bonitas. Nunca te fiz um poema, nem te levei a jantar a restaurantes onde as velas tremessem com o respirar da nossa paixão. Nunca te comprei aquele vestido vermelho com que ofuscasses o sol. Nunca.
Nunca te escrevi uma carta de amor, nunca me ajoelhei aos teus pés cantando hinos de amor. Nunca.
Nunca te levei àquele concerto, nunca fomos ver aquele quadro famoso, aquela ópera, aquele bailado….
Ela brinca suave. Pelo canto do olho espreita-nos. Colhe flores. (malmequeres, tulipas, cravos?!) Nunca….
Aperto-te a mão com mais força. Olho-te nos olhos. Olhas para mim sorrindo.
Amo-te! Os teus olhos são verdes, lindos…têm flores, (malmequeres?) poemas escondidos, borboletas brancas a esvoaçar.
Ela salta feliz, aproxima-se. Olha-nos, vê as nossas mãos apertadas sorri. Salta.
Não falamos não é preciso. Sinto a tua mão na minha…doce, quente!
Olhas-me e eu sei tudo. Olho-te e sei que sabes tudo...
Ele está ali. O poema que não te escrevi, as flores que não colhi para te oferecer, as velas tremendo com o calor da nossa paixão, o grito de amor, a tela mais bela, a mais bela melodia, o melhor tango.
O sorriso mais puro. O mais doce. A vida rumorejando.
Amo-te e tu sabes! Sabes que como o poema diz, continuas a ser alma e sangue e vida em mim, que continuo a amar-te perdidamente, perdidamente. Sabes que em fundo continua a mesma música, a mesma Ave-Maria de Schubert, no meio dela a mesma frase: Até que a morte os separe.
Até ao fim perdidamente,
Aproxima-se feliz, suave e docinha pega-nos nas mãos (rudes grandes, desajeitadas as minhas) e em cada uma deixa uma flor:
Amores-perfeitos!

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

V-MEMÓRIAS

“Casei a três de Dezembro de mil novecentos e cinquenta e um e logo no dia a segui, de manhã, fui à água à Fonte com um cântaro em cima dos ombros e um balde nos braços. Tinha de subir uma grande ladeira antes de chegar a casa cansada e carregada como um burro de carga. Durante o dia quando o teu pai ia trabalhar e eu ficava em casa, de manhã ia à água e à lenha para quando a noite chegasse começar a fazer as papas. Eram feitas num tacho de arame amarelo no fogo a lenha, com um candeeiro de petróleo ao lado, numa fornalha que está no alpendre e que ainda hoje lá podes ver.
Á noite deitava os grãos de molho e de manhã começava a mesma vida: Punha os grãos a cozer e enquanto eles coziam ia à lenha pelas terras em volta.
Deixava ficar a panela de barro em cima do fogão e eles lá ficavam cozendo…Chegava com a lenha e lá ia buscar outro cântaro de água para de tarde ir trabalhar e vá de assoprar o fogo para os grãos cozerem. Ás vezes já estava quase apagado, e os grãos se deixassem de cozer encruavam e já não se davam cozidos…porém estava sempre a púcara de água ao lado da panela para ter quente e não se deitar água fria… e era assim a minha vida e foi assim ao longo de alguns anos. De noite, enquanto as papas arrefeciam, moía o milho para as papas do dia seguinte…voltando aos grãos, por vezes tinham de se esfregar com uma rolha de cortiça para ficarem um pouco mais macios e com umas pedrinhas de sal. Depois tirava-lhes as peles para irem para a panela já um pouco mais macios e cozerem um pouco melhor. O seu tempero quase sempre era um pouco de azeite, quando a fervura levantava, e depois um bocadinho de toucinho e chouriço quando havia. Quando não havia era só com azeite. Mais tarde nasceu a tua irmã e a vida continuou igual e por vezes ainda pior. No Inverno por vezes não havia trabalho, chovia e fazia frio. As coisas que tinha eram muito poucas para nos proteger do frio, a lenha estava molhada e meio verde. Naquele tempo era muito raro arranjar lenha…Quem não tinha terras com árvores ia ás das outras pessoas mas quase sempre às escondidas pois a lenha era na altura um bem raro e precioso, era mesmo muito complicado…. As roupas da tua irmã eram secas ao pé do fogo, por vezes em cima dos joelhos, para apanharem mais calor. Não havia muita roupa e a pouca que havia não conseguia secar. Punham-se as fraldas, que se chamavam cueiros, uma de pano fino e outra de flanela entre as nossas mantas para secarem com o nosso calor. No berço para ensopar a urina púnhamos uns bocados de roupa como a fralda da camisa do pai ou as calças…pois não havia nada, nada! A tua irmã passou muito frio especialmente no tempo da apanha da azeitona. Eu tinha de a levar comigo, por vezes ia enrolada nas sacas que levava para as despejar. Enfim as pessoas da época de agora não sabem dar o valor à vida e nem lhe parecem que isto seja verdade. Mas isto é só uma pequena amostra e quando me ponho a pensar o que passei aqui nesta mesma casa dava para muitos, muitos livros. Pois passei por tudo um pouco, mas também digo, tive sempre pessoas mais velhas que me visitavam e aconselhavam pois havia amizade e solidariedade entre as pessoas como agora já não existe. “

Memórias da minha mãe 1951/52

Até breve!