domingo, 16 de março de 2008

VIII- A PROCISSÃO

O padre Domingos dormira mal durante a noite e acordara com a sensação que aquele dia de procissão que se aproximava não lhe iria correr muito bem. Durante toda a noite mal pregara olho. Maus sonhos, um desconforto enorme e uma sensação de angústia não o deixaram descansar o suficiente. Sonhara com pássaros, com penas, com flores murchas, com chá sabendo a limões podres... Durante toda a noite, nas redondezas, os cães tinham ladrado desesperadamente e de manhã quando abrira o postigo e espreitara o alvorecer do dia, a primeira coisa que avistara tinha sido um pintainho amarelo, morto pingando ainda sangue e sujando-lhe a soleira da porta.
Tomara um pequeno-almoço simples, muito leve e mesmo assim sentia o estômago como que a ferver. O fígado e o pâncreas davam-lhe pancadas agudas trazendo-lhe maus sabores à boca.
Deu a primeira volta pela igreja examinando aqueles pormenores de rotina. O altar, as flores…Viu se tinha ainda velas em quantidade suficiente. Espreitou o andor, ainda por acabar de enfeitar. Foi verificar se as vestes que iria vestir estavam devidamente limpas e passadas a ferro.
O primeiro foguete soou ainda muito cedo tentando acordar a aldeia para a festa que se aproximava. Durante toda a noite se tinha trabalhado afincadamente para de manhã estar tudo embelezado e florido para receber os milhares de visitantes que viriam assistir à grandiosa procissão. Milhares de flores verdejavam em canteiros desenhados geometricamente na estrada que conduzia à igreja, onde tudo iria ficar engalanado e brilhando de fulgor, esperando a hora de sair a procissão.
Pelas janelas espreitavam vistosas colchas e as senhoras traziam os seus melhores vestidos dando o braço a lustrosos maridos que arfavam dentro de apertados fatos.
Outros, sorridentes, de olhar másculo e aperaltados para o efeito, cavalgavam garbosas tochas enfeitadas com flores, ao som das quais iriam exacerbar a sua imensa fé propagando-a a plenos pulmões pelas perfumadas artérias da vila. Nas vistosas janelas a cor de algumas colchas misturava-se com o colorido das flores. Ufanas e vaidosas donas de casa arvorando um ar de superioridade espreitavam o crescente movimento na urbe.
Vendedores de balões, farturas, bolos e doces faziam bom negócio, enquanto em tudo quanto era cafés e pastelarias os donos esfregavam as mãos de contentamento perante o alegre tilintar das caixas registadoras. Crianças, rebocadas pelos pais, passavam assarapantadas sacudindo do fato novo o resto do açúcar que o último bolo tinha lá deixado.
No ar o crescente cheiro a devoção e misticismo misturava-se com o perfumado cheiro de rosmaninho e demais flores campestres. O sol, bola de fogo ardendo no firmamento sorria enquanto que uma ligeira brisa destapava alguns dos penteados mais trabalhados.
Tudo sorria e parecia cantar esperando os primeiros acordes da centenária banda musical que em breve chegaria.
Na igreja o Padre Domingos não dava para tudo. Afogueado andava de um lado para o outro num torvelinho. Era preciso compor um pouco mais o andor, endireitar aquele ramo de rosas, agrupar as crianças por sítios e por idades. Suava abundantemente e ansiava pela saída da procissão. E os azedos do maldito fígado a virem-lhe à boca…
Ansioso e nervoso, começava a estranhar a demora da música… Costumavam chegar sempre cedo para ensaiar um pouco, afinar as cordas vocais, e desta vez ainda nem sinais!
A sensação de desconforto agudizava-se… parecia-lhe estar com visões, como que flutuando no seu próprio mal-estar, meio ébrio… Começou a ficar amarelo e a ver tudo amarelo à sua volta. Não estranhou, nem reparou neles quando grandes e negros, ladrando e babando-se entraram na igreja. Nas suas bocas negras, cheias de penas, pequenos pintainhos amarelos debatiam-se ainda. Saíram rosnando, medonhos, pela porta lateral deixando no chão da igreja um rasto de penas e pintainhos sangrando. E foi daí que eles começaram a sair. Pequeninos primeiro, crescendo à medida que avançavam, festivamente vestidos de amarelo perfilaram-se em frente à igreja começando a ensaiar os primeiros acordes.
Vieram pedir-lhe se podia começar a procissão, pois a banda já estava a postos e o povo impaciente e cheio de calor…
Quando à noite se foi deitar sentindo o estômago a ladrar de amarelo e foi espreitar o andor verificou que no lugar das flores estavam penas e dezenas de pintainhos mortos…Dormiu durante oito dias seguidos!
Quando acordou e espreitou pelo postigo, o sangue do pintainho tinha secado na soleira da porta transformando-se num pequeno raio de sol amarelo.
A banda musical pingando sangue dos seus instrumentos e sujando-lhe todo o adro da igreja, continuava a tocar……Um povo desgrenhado, urrando e ululando gritava: Aleluia, Aleluia…
Benzeu-se três vezes e foi preparar um chá.
Com limões, forte e amarelo!

Vitor Barros