terça-feira, 12 de outubro de 2010

O Sofá!

O Sofá I

Um casal está sentado num sofá de madeira forrado com um tecido verde com pequenas e quase insignificantes figuras. Nos pontos onde se une à madeira uma pequena fila de pequenas (minúsculas) pérolas quase se desvanece. Algum cansaço está escondido nos olhos deles. Suas mãos, calejadas, são mãos de gente trabalhadora, de gente que trabalhou muito para mais tarde terem o merecido descanso. A idade pesa-lhes, embora se mantenham de costas e de queixo erguido. O homem tem a mão pousada no sofá, num gesto convidativo, quase como que nos pedindo que ocupemos aquele lugar há tanto tempo vago pelos filhos que partiram. O papel de parede foi saindo tal qual a juventude. Suas roupas, desbotadas tais quais sonhos passados. Os sorrisos que há muito abalaram, deixando no seu lugar uma pequena (vaga) amargura.
Um primeiro plano, o casal, mãos grandes de trabalhadores, sorrisos tristes de solidão. Um segundo plano, um sofá grande com demasiado espaço. Em terceiro lugar um papel de parede a cair aos bocados como experiencias que eles jamais viveram. Ainda bem que se têm um ao outro….


(Texto da minha filha)


O Sofá


São quatro da tarde e já é Inverno. Está escuro e chove. Fortes bátegas castigam as vidraças que vão ficando embaciadas formando pequenos desenhos sem rosto que nos olham trocistas. Olho para ti e vejo que também estás a chover. Observo as tuas vidraças onde dois olhos mortiços e apagados parecem querer sacudir gotas de melancolia e tristeza muda.
O sofá onde estamos sentados é enorme. Parece que cresceu nos últimos dias. O seu tecido verde parece também um verde murcho e sem graça. Nos pontos onde se une à madeira, meio rasgado, o seu verde ainda conserva o desenho de pequenas borboletas que esvoaçam sem graça nenhuma. Continuas a chover. Em frente, a televisão também enorme continua muda e nela figuras embaciadas saltitam em redor de palmas e aplausos sem calor. Tudo triste, gasto, sem alma. Continuas a chover e a escurecer mais ainda. A rua por detrás das vidraças está deserta. Os faróis de alguns carros rompem o escuro e saltitam por entre a bátega de água que nos varre a janela de cima a baixo. Acomodo-me melhor em redor do silêncio, puxo a manta para cima dos joelhos tentando tapar a solidão que o Inverno e a chuva semeiam em mim.
Umas das pernas, a esquerda, recusa-se a acordar e castiga-me sem paixão, fortemente, como que vingando-se de maus tratos sofridos outrora. Reparo melhor na manta e vejo que também ela está gasta, desbotada, descolorida. Toco-te com uma das mãos e todo o teu eu se parece sobressaltar. O teu rosto está branco e as tuas mãos de passarinho estão cansadas. Sorris sem sorrir por entre a chuva que te invade a alma. Estamos juntos, calados, colados quase e mesmo assim o sofá não diminui de tamanho. Assusto-me quando o olho melhor e o vejo impávido e sereno, sem chuva no olhar nem dor na perna.
Lá fora a chuva torna-se temporal. Troveja fortemente e o forte colorido dos relâmpagos ilumina totalmente a rua. No tecto a luz estremece e na televisão as figuras saltitantes ficam de repente paradas e suspensas. Não gostas de trovões...nem eu! Fazem com que te apeteça chover ainda com mais força. Agora é o vento também. Forte, uivante. Fortes rajadas assobiam na janela e rastejam por baixo da porta. Levantas-te e vais lentamente caminhando até à cozinha. Espreitas pela janela e sacodes da cara os pingos que caíram pela fresta que entreabriste. Outro relâmpago ilumina as laranjeiras entrando por elas a dentro. A sua luz entristece as laranjas que se agitam desesperadas tentando manter-se de pé. Silenciosa regressas devagarinho arrastando os anos e o silêncio para o sofá. Sentas-te novamente ao pé de mim e do escuro que guardas na alma tiras três palavras simples:
-Ela vai vir!
Passo-te a mão pela cara, sinto-a fria e ainda com algumas gotas a escorrerem. Grossas e frias. Lembro-me das laranjas lutando…
-Ela via vir! Repito e aperto-te a mão com mais força.
Outro relâmpago e mais outro ainda mais forte. Um trovão enorme e medonho despenha-se sobre nós, apaga de vez a luz do tecto e faz desaparecer as palmas que saltitavam animando as figuras mudas que a televisão nos mostrava. De repente só escuro, chuva, vento.
Ficamos mais juntos durante os minutos que faltam. São quase seis horas. Cinco minutos antes das seis afastamo-nos um pouco e deixamos entre nós o espaço vago para ela se sentar.
Às seis em ponto sinto o calor da sua mão fria segurando a minha. Não falamos nem é preciso.
Começo também a chover! A nossa filha chegou.
Felizmente te temos a ti…