quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Fernanda:

Há coisas que se nos prendem à pele e que nunca mais nos largam. São imagens, sons, cheiros. Por vezes pequenos gestos, perguntas que nos fazem, conversas que ouvimos. Hoje estava a beber um café e lembrei-me dela. Não sei porquê nem o que me levou a tal. Mas de repente: zás. E lá estava ela ao meu lado a olhar-me. Nunca mais a vi, nunca soube o seu nome e por vezes duvido até que tenha mesmo existido. Quando essa dúvida me assalta abro a carteira e procuro o seu contorno lá no fundo, naquele compartimento onde guardo alguns papéis que de vez em quando me fazem falta. E ela lá está, redonda, sorrindo-me. Fico contente por a ter ali e coisa estranha, já em algumas situações em que me tenho sentido mais em baixo, triste ou carregado de problemas e incertezas, o seu contacto, o senti-la, pegar-lhe e tocar-lhe me tem dado alívio quase imediato a esses padecimentos. Já a guardo há alguns anos, não sei bem quantos, nem isso é importante. Foi num Domingo. Tinha ido à missa e a igreja estava completamente cheia. Bonita, toda enfeitada, uma suave música de fundo antecipava a chegada do padre. Era Domingo mas não era um Domingo qualquer. Era Domingo de Páscoa. Tudo em redor era festa e alegria. A procissão sairia em breve. Os foguetes madrugadores tinham acordado a populaça que armada de uma enorme fé em breve se concentraria no adro da igreja, preparando gargantas, para desalmadamente cantarem e gritarem: Aleluia, Aleluia.
Fui cedo como habitualmente gosto. Com tempo para ver, ouvir e apreciar a alegria que esse dia deposita nas pessoas. Antes da missa começar a igreja já estava cheia. Abarrotava. Quando a cerimónia começou dificilmente se conseguiria arranjar lugar para mais alguém. Foi então que a vi. Estava ao meu lado, de pé, apresentando um grande sofrimento e apoiada numa bengala. Curvada pelo peso da idade. Vestia uma saia preta, uma blusa branca e um casaquinho também preto por cima. Ao peito um fio com uma medalha com dois corações entrelaçados. Por baixo dos corações a frase: Nasci para ti. Foi nesse momento que o nosso olhar se cruzou. Sorriu. Esse sorriso atravessou-me todo e ficou como que semeado em mim. Nunca tinha sentido um arrepio tão grande pelo meu corpo, uma sensação de pureza tal que parecia fazer-me levitar. Desviei o olhar mas o sorriso continuava a morar em mim. Levantei-me e dei-lhe o meu lugar sentado. Fiquei de pé. Agradeceu-me gentilmente e eu continuei embrulhado na magia daquele sorriso. A missa continuou. Ao meu lado ela rezando. Ajoelhando-se. Comungou. A certa altura via-a jogar a mão ao peito e à medalha que lá tinha. A missa acabou e ouve a confusão da saída. De repente senti uma mão a agarrar a minha e algo redondo e metálico a ser depositado nela. Fechei a mão involuntariamente e olhei em redor. Não precisei de olhar para saber o que era. Na confusão da saída tentei alcançá-la. Agradecer-lhe, dizer-lhe que não podia aceitar. Não consegui. Avistei-a já na porta de saída. Desenvolta parecia atravessar a multidão. Parecia passar pelas pessoas sem lhes tocar. Voltou-se para trás e sorriu novamente. Nunca mais a vi. Por vezes tenho dúvidas de que tenha realmente existido. Outras vezes olho e ela está ao meu lado sorrindo-me. Outras vezes está guardada na carteira.
Hoje quando bebia o café senti-a a meu lado. Tocou-me suavemente na mão e disse-me:
-Dá-lha…
Tornei a olhar e já lá não estava. Um sol imenso tomara conta de mim e uma paz milagrosa envolvia-me. Envolvia-nos aos dois. Estás a meu lado e sorris. O mesmo sorriso lindo e terno de há cinco, dez, quinze, vinte anos. Pego-te na mão e deixo lá a medalha:
-Nasci para ti

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