segunda-feira, 11 de agosto de 2008

XII- CHUVA QUENTE

A igreja estava apinhada de gente que derramava suor em fio, naquele dia de Julho em que o casamento se iria efectuar. Logo pela manhã um cheiro acre, mórbido de cinza queimada, deixara no ar a sensação do que iria acontecer e que iria mudar a vida da aldeia para sempre. Ao acordar, suado e pegajoso, recordou-se de imediato que tinha chegado esse dia anunciado desde há muito. Ia casar e conforme sempre soubera, esse dia iria ficar para sempre marcado na história da terra e de toda a gente que iria assistir ao triste e trágico acontecimento.
Desde sempre sabia que aquele dia iria novamente chegar. Tinha-o esperado e tinha-o receado, tinham-lho descrito, tinha-o vivido já outrora.
O sol acordou-o completamente e, logo de manhã, tornou-se tão abrasador que tudo à sua volta parecia estar a suar e a derreter. Nunca um dia de Julho acordara tão quente.
Agora que estava na igreja e que a cerimónia iria começar mais a sensação de desconforto e mistério se adensava à sua volta, tudo iria recomeçar em breve.
Para cima de quarenta e tantos graus afogavam os muitos convidados que tinham aceite estar presentes. Moviam-se inquietos e falavam com bafos de suor a escorrerem pelos engomados colarinhos.
O primeiro trovão surgiu exactamente quando o Padre, de negro vestido, saía da sacristia. Enorme, e negro o padre, acordara há breves momentos.
Negro e grande, o trovão, ribombando enorme, rolou por cima da igreja abrindo sulcos na parede testemhunha de séculos e séculos de mistérios.
Todos estremeceram e olharam para o padre que se preparava para começar a cerimónia, quando outro medonho trovão arrancou a grande e pesada porta da igreja e trouxe os primeiros pingos de chuva. Grossos, enormes, brancos como dedos de menino, precipitaram-se em tremendo aguaceiro sobre a terra que parecia ferver. O barulho ensurdecedor depressa abafou todas as vozes e as primeiras preces começaram a desenhar-se nas caras angustiadas. Pela porta derrubada da igreja podia ver-se o exterior, onde um escuro aterrador fazia lembrar um imenso inferno. Em breve começaram a passar as primeiras árvores arrancadas pela fúria da chuva. Enormes, seguiam na corrente arrastando consigo tudo. Um par de porcos, dois burros, alguns cães, galinhas, patos e coelhos não se conseguiram também segurar e seguiam na castanha e barrenta fúria da água que agora já era um autêntico ribeiro e ia engrossando de minuto a minuto.
Duas horas passadas continuava a chover cada vez com mais intensidade. Dentro da igreja o calor mantinha-se insuportável e o padre refugiara-se na sacristia onde os primeiros ratos lhe começaram a subir pelas botas acima. Adormecera e iria dormir durante os próximos quatro dias.
Durante toda a noite o céu continuou a despejar vento e chuva como nunca se tinha visto. O calor intenso continuava dentro da igreja de onde ninguém conseguia sair. Inacreditavelmente nem uma lâmpada nem um fósforo nem um bafo de luz se vislumbrava em nenhum dos presentes e mais estranhamente ainda, ninguém via nem sentia o seu vizinho por mais que apurasse a vista e o ouvido ou que com a mão tentasse encontrá-lo. Todos se tinham enterrado e refugiado dentro de si próprios. Parecia que um silêncio sepulcral tinha enterrado vivos todos os presentes na cerimónia.
De repente começaram a senti-los! Primeiro um pequeno chiar, depois um ruído imenso que saía das velhas paredes e abafava o forte aguaceiro que sem dó nem piedade tudo estava a destruir. Começaram a senti-los nas pernas, nas roupas, nas calças, na cara, na boca e nos cabelos, chiando, pegajosos e impiedosos. Tentavam sacudi-los mas a sua viscosidade e cheiro nauseabundo entrava-lhes pelas narinas e tolhia-lhes os gestos. Tentavam pisá-los mas agarravam-se aos sapatos e em breve todo o chão da igreja era uma enorme carnificina onde por cada um que conseguiam matar cinco ou seis surgiam mais fortes olhando-os no escuro. Não se via vivalma só os guinchos e o ruído das suas loucas corridas. Tentavam gritar mas não conseguiam pois as suas bocas estavam tapadas, cheias deles, os braços queriam esbracejar mas não tinham força para isso e as suas pernas pareciam anestesiadas com aquele bafo pérfido.
Na sacristia o padre continuava a dormir e as suas roupas já tinham desaparecido devoradas pelo apetite voraz de milhares de ratos. O branco nu da sua carne alvejava na negrura da noite de terror que se vivia. Indiferente dormia suando e ressonando ritmadamente.
Durante mais três dias continuou a chover como nunca ninguém imaginara que pudesse nalgum lugar da terra suceder daquela forma, até que de repente um imenso relâmpago deu luz à tarde e tudo se iluminou de novo. No adro da igreja instantaneamente milhares de flores tinham florescido como por milagre e dentro da igreja pequenos montinhos de cinza fumegavam junto dos bancos onde outrora os convidados teriam estado. Perto do altar um resto de tecido branco, com uma cruz bordada em fundo, indicava que uma noiva teria passado por ali outrora e num banco um pequeno livro de missa, de capa negra e com um pequeno crucifixo desenhado, sobrara da fúria que se abatera sobre tudo.
Foi nessa altura que o padre acordou do seu estranho sono. Viu-se nu e achou estranho tal facto mas não demasiado pois o calor era tal que pensou ter-se despido sem saber. Num canto viu um fio de água e um pequeno rato fugindo por um buraco na madeira. Pareceu-lhe anormal tal facto. Ratos eram coisa que não costumava haver na sua igreja. No adro da igreja milhares de flores brancas despertaram-lhe a curiosidade e na igreja um ligeiro odor a cinza e um negro gato esquelético de olhos endemoninhados em cima do altar fizeram-no parar e pensar… Afinal sempre tinha ratos na igreja, o gato provava-o. De repente lembrou-se que tinha um casamento para fazer mas nem noivos nem convidados lhe apareciam. Voltou-se para o altar e o gato lá continuava. A olhá-lo de pelo eriçado, mas com uns olhos humanos e os uns dentes ferozes, duas perfeitas fileiras completas. Um gato com um rosto humano só que continuava a ser um gato dentro do qual o noivo se escondera dos ratos.
Nu, pegou no crucifixo onde um Cristo de madeira parecia sangrar e apontou-o para o gato, suando em bica, exactamente no momento em que o sino tocava as doze badaladas. Só nesse momento o gato se começou a transformar. Ao correr pela igreja, perseguido pelo nu do padre e pelo crucifixo, ia aumentando de tamanho e derrubando tudo à sua saída. Quando chegou à porta o seu tamanho era o de um cão e na rua tomou uma estranha forma meio humana meio bicho desconhecido que conforme corria ia berrando, ladrando e pisando as flores que à sua passagem secavam e murchavam.
Desapareceu por completo e todas as flores tinham secado, murchado, desaparecido à sua passagem restando pequenos montículos de cinza fumegante onde antes elas tinham florescido sem aviso prévio.
Satisfeito o padre regressou à igreja e preparou-se para o que iria suceder a seguir. Em breve tudo iria recomeçar: O mesmo casamento, o mesmo noivo e o mesmo gato iriam fundir-se num só. A mesma chuva viria e os ratos iriam gritar e chiar ainda mais, por isso iria dormir. Resignado preparou-se para que o seu corpo, grande, branco, retomar novamente a forma inicial. Sem dar por isso foi-se escondendo dentro de si próprio e em breve era menino outra vez. Dormiu… Quando eles chegassem iriam acorda-lo e tudo se repetiria…
Diabo de vida!
Vitor Barros

8 comentários:

Maria disse...

Acabei de ler um texto que me impressionou.
Tens uma enorme capacidade de pores em palavras a tua imaginação...
... por momentos pareceu-me estar a ler Saramago...

Obrigada, Vitor.

Um abraço

Isamar disse...

Vítor, Amigo!

Um post impressionante. A vida num corrupio incessante como é a de todos nós.E as transformações que inesperadamente acontecem e que vão de um extremo ao outro. As voltas que a vida dá!
Quanto à escrita, riquíssima, permite-me o conselho: continua a escrever Vítor!
Fizeste-me,mais uma vez,lembrar os grandes escritores.

Beijinhos e boas férias

Elvira Carvalho disse...

Um texto que me surpreendeu quando o li pela primeira vez. Uma mistura de realidade e ficção, redopiando numa valsa de palavras, muito bem escritas.
Li-o duas vezes. Por isso hoje a surpresa já não foi tão grande.
Um abraço e resto de boa semana

Bichodeconta disse...

Deliciosa forma de escrever, deixa-me sempre com vontade de voltar.Parabéns.. Como posso adquirir o teu livro amigo? Um beijinho, ell

Antunes Ferreira disse...

Boas

Passei hoje por aqui para vos dizer olá! E ver como vão as coisas. Pelo que vejo, felizmente bem. Repito: gosto deste blogue. Virei cá sempre que puder pois entendo que o mereces – e dá-me prazer.

Espero também que voltes ao meu Travessa do Ferreira. Ou que o visites pela primeira vez. Ficarei, podes ter a certeza, muito satisfeito.
Qjs Abs

Alexandre disse...

Vitor,

este foi um dos textos mais fantásticos que li ultimamente na net - bem que podia ser a página de um livro de contos, ou um conto, ou um pedaço de conto, não importa, o que importa é que é preciso lê-lo de um fôlego, saborear o texto e no fim voltar a ler...

Um forte abraço!!!

Isamar disse...

Voltei para falar das minhas gentes, da minha terra, das memórias vivas e reais que perduram na minha alma e no meu coração.

Beijinhos

Anônimo disse...

Parêntesis...

Curioso, como o mundo é pequenino e dá muitas voltas... também já encontrei o Vitor na Ning (acho que é a mesma pessoa que estou a pensar)!

Felicidades!

Isabel