segunda-feira, 17 de agosto de 2009

XX- O CHEIRO

Quando nessa manhã acordou, mais cedo ainda do que habitualmente acontecia, cheirou-lhe logo….
Já o conhecia há mais de quarenta anos. De repente aparecia, sempre forte, intenso, meio ácido e agreste, uma mistura forte de amêndoas amargas com cinza e terra queimada, molhada…
Talvez por isso soube logo que aquele dia iria ser um dia muito mais do que quente, um dia em que o calor quase lhe queimaria a boca e secaria os lábios, um dia em que o cheiro o atormentaria, lhe provocaria náuseas, arrepios, um dia em que teria de pôr as galinhas à sombra e em que teria de regar a pequena e nova macieira que de repente lhe nascera no quintal. Esta nascera assim como que de repente, sem se dar conta de como nem porquê, sem ser semeada nem plantada. Uma manhã reparara melhor no castanho rugoso do chão e um pequeno tronco como que saído do nada sorrira-lhe com as suas folhas tenras parecendo que também elas vinham já impregnadas do cheiro…
Conhecia aquele cheiro desde pequeno, desde os tempos em que o avô o punha em cima da velha mula e atravessavam toda a aldeia, passando por dentro do velho cemitério onde o coveiro lhe vendia as galinhas. Pretas, sempre pretas e só pretas, carregando com elas o cheiro…Aí costumava apreciar as frondosas sombras derramadas sobre os lisos lajedos polidos contando-lhe o avô que a seiva dos seus antepassados as tinha ajudado a crescer e que parte daquela fresca sombra lhes pertencia.
Sempre fazendo-lhes companhia o fiel Fadista, um cão negro como a noite, trotando alegremente atrás deles. Bonito o Fadista, bom caçador, bom amigo e brincalhão e sempre pronto para uma boa briga, para uma boa corrida.
Conhecia o cheiro desde os tempos em que o avô, sentado debaixo da grande macieira, jogava pedacinhos de pão às galinhas que de tão habituadas que estavam a ele e ao cheiro, adormeciam poisadas nos seus ombros e pernas enquanto ele lhes recitava e cantava orações e canções desconhecidas. Enorme o avô, sempre o vira ali, e parece que sempre estivera ali nos quarenta anos anteriores, quieto, na sua cadeira, rodeado de galinhas pretas que alimentava desde que nasciam até que morriam. Soube depois que ao que se sabia nunca provou um único ovo que fosse, ou um só bocado de carne das suas galinhas negras, e que o seu único objectivo era vê-las crescerem, envelhecerem e morrerem, enterrando-as debaixo da cadeira onde se sentava, deixando-lhes sempre o bico de fora e que lhes continuava a empurrar pelo bico abaixo pequenos bocadinhos de pão, até muitos dias depois da sua morte.
Lembrava-se bem do cheiro, quando num dia quente como uma brasa encontraram o avô há quatro dias pendurado na velha macieira, desfigurado e sorrindo sem graça nenhuma, rodeado por meia dúzia de galinhas famintas e sedentas debicando-lhe os pés e rasgando-lhes as velhas meias cinzentas.
Chegou-lhe mais forte às narinas agora. Vinha não sabia de onde, talvez do monte em frente onde o calor iria fazer ferver as árvores recortadas no horizonte, talvez da casa em frente onde uma pequena janela entreaberta deixava antever uma pequena fresta de vida. O mais certo seria vir de dentro de si mesmo, do seu interior, onde o cheiro se poderia ter refugiado tentando fugir ao dia quente que o horizonte prometia.
Vestiu-se sem pressa, as calças velhas com o cinzento já gasto pelos dias, uma camisola branca de alças por baixo da camisa de quadrados azuis e as meias cinzentas e finas por causa do inchaço que o calor lhe estava a provocar nos pés.
Abriu a porta e o bafo quente do dia que se aproximava trouxe-lhe o cheiro mais forte ainda, moldando-lhe o sorriso amargo do dia.
O esconder do negrume da noite desembaciou-lhe a vista que lhe parecia estar a pregar partidas. Estava a vê-lo e a senti-lo, esse cheiro que o assombrava de tempos a tempos.
No seu quintal a macieira nascida do nada, crescera durante a noite tornando-se uma árvore adulta, e os seus troncos cruzando-se labirinticamente formavam centenas de forcas negras onde centenas de negras galinhas esperneavam freneticamente deixando cair dos seus bicos entreabertos pequenos pedacinhos de pão.
Sabia agora que nunca mais se iria livrar daquele cheiro, era o cheiro da morte que de vez em quando lhe recordava o seu destino.… Estava a puxá-lo, estava-lhe gravado no sangue. Avançou para a macieira, sentou-se na cadeira onde contava passar os próximos vinte anos e foi nessa altura que o ouviu:
No ramo mais alto, negro e imponente durante mais de vinte minutos cantou como nunca se ouvira um galo cantar, as mesmas canções e orações desconhecidas. Reparou que as galinhas mesmo mortas estremeciam e aconteceu-lhe o mesmo…Só que não estava morto ainda, pelo menos por enquanto, já que o cheiro ainda lhe chegava às narinas. Avançou lenta e calmamente de encontro ao destino, de encontro ao cheiro…
Ficou pendurado com o mesmo sorriso sem graça nenhuma!
Foi o avô quem, quatro dias depois o encontrou!

5 comentários:

Mare Liberum disse...

Voltaste, amigo, com um texto profundo que ilustra as nossas vivências em terras rurais, as nossas crenças, os nossos usos...
Também tive uma galinha preta que morreu velhinha.Vinha comer o milho à minha mão.

Beijinhos

Bem-hajas pelo regresso. Tenho saudades da tua escrita.

Elvira Carvalho disse...

Felizmente regressou. Um texto forte, como forte é a solidão, o desanimo a morte...
Um abraço

Mafalda Branco disse...

Querido Vítor,
que delícia reencontrar-te numa escrita tão profunda, como sempre.
É bom ver que estás de volta. Não pares de escrever, nunca!
Um beijo e um abraço com energia positiva!
Mafalda

Kok disse...

Após tantas visitas em vão, é um prazer voltar a ler-te. Já tinha pensado que desistiras de nos contar coisas do teu pensar.
Gostei!
Um abraço!

Epifânia disse...

Esta chuva miudinha e suave trovoada foi a maneira que os céus tiveram de felicitar alguem muito especial que neste dia 14 celebra o seu aniversário. Muita saude e alegria deseja a Epifânia