quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

XVIII-ELA, O GATO, A MOLDURA….(III)

Fazia nesse dia nove meses e alguns dias que o gato não saía de casa.Não que estivesse preso simplesmente porque chegava à porta miava e voltava para trás. Nesse dia ainda a madrugada não fechara portas quando ele miou como nunca o ouvira fazer.
Acordou meio assustada, sobressaltada, sem saber porquê, achou que aquele iria ser um dia diferente.. Uma grande e redonda lua espreitava altiva no rendilhado azul-escuro do céu. Parecia-lhe hoje mais redonda e amarela do que nunca..Desde aquele dia em que se vestira de negro que andava cismando na vida. Levantava-se normalmente cedo, angustiada pela ausência do passado. Dava voltas e voltas pela casa arranjando tudo o que estava arranjado e fazendo tudo o que estava feito. Tirava o pó das molduras, na casa de banho a torneira voltara a pingar e na cozinha a torradeira tinha avariado.. num canto o bolor aparecia : verde, parecido com aqueles limos que a maré por vezes trazia agarrada à saudade.
As molduras na parede…..encanecidas, enrugadas, calejadas de cal e saudade..A gravatinha e o livro! O dia da primeira comunhão. Ele de fato, o casaquinho com as flores bordadas…!
Limpou-as novamente, cuidadosamente...com a alma escorrendo lágrimas.
Espreitou a rua, o céu o mar.. A lua desaparecera como que por milagre..e um alaranjado ténue anunciava que o sol iria talvez brilhar..
Roçou-se-lhe nas pernas, cabeceou-a com mais força, insistiu. Miou com força, mais força ainda. O gato! Que queria o gato..Estava diferente, olhava-a diferente. Nunca mais andara assim desde que voltara com eles na alma, nos olhos! Nove meses e alguns dias..
Abriu a porta e teve a certeza que aquele dia acordara diferente. Era o dia..!
O gato olhou-a sorrindo, remando com os olhos, e nove meses e alguns dias depois, ao abrir da porta, miando ao escurecer do esconder da lua e ao amanhecer do acordar do sol, saiu correndo, levando com ele os dois e remando..remando em direcção à lua. À lua...
Chegara a hora! Regou pela última vez as flores, encostou à parede caiada a cadeira com cuidado e saltou para a moldura. Aconchegou o casaquinho bordado e carinhosamente como um dia fizera, endireitou-lhe a gravata e ajeitou-lhe no braço o livrinho da primeira comunhão ….

8 comentários:

Mare Liberum disse...

Um texto perpassado de saudade, de passado, de fim de vida quando passamos a viver de recordações. Fiquei triste mas não perdi a esperança de ver um post mais animado.

Beijinhos

Anônimo disse...

Amigo Vitor, entrei para lhe dar um abraço e mais uma vez manifestar-lhe o quanto aprecio os seus textos!
O meu abraço!

Pandora disse...

Passo sempre aqui para ler em silencio...hoje decidi dizer que adoro ler seus textos...
bom fim d semana...

Menina do Rio disse...

A vida é feita de retalhos que se juntam e depois que se descosem, deixando apenas as lembranças amareladas nas molduras...

Contos que ficam!

Gostei de conhecer-te

Fica um beijo meu

Elvira Carvalho disse...

Vim desejar-lhe uma Páscoa Feliz, com muita Luz e muito Amor que irradiem por todos os dias da sua vida.
Um abraço

Pandora disse...

os textos são todos tão bem escritos e descritos que entramos em cada frase em casa palavra...
beijinhos

Kok disse...

"Mê cáre amigue", então não lhe apetece escrever mais nada?
Um novo texto sobre o que lhe vai na alma.
O que pode relatar sobre um passeio nas margens do Gilão.
Ou mesmo "desancar" numa menos boa decisão do sr. presidente da câmara.
Sempre que possível dê notícias!
Um abraço!

Dora disse...

Quando poderes passa plo meu...